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Artigo de Opinião

25/03/2023 08:00

Entre vários episódios de que gosto, há uma curta passagem que me emocionou mais do que uma vez ["Spoiler Alert"]: Quando Ulisses, disfarçado de pedinte, regressa a Ítaca ao fim de vinte anos, encontra o seu cão, Argos que, já sem forças, o reconhece e morre, como se tivesse esperado que voltasse para finalmente partir. Ulisses solta uma lágrima, que rapidamente procura esconder do seu guardador de porcos e fiel amigo, Eumeu, que ainda não o reconheceu.

É este mesmo episódio da Odisseia que inspirou o feliz título do livro de Manuel Frias Martins, "A Lágrima de Ulisses" e que o autor escolheu por «(…) ser a metáfora da perceção do humano como princípio estruturante da literatura». Naquela lágrima literária, rapidamente limpa, está um conjunto de emoções que condensa toda a humanidade e compaixão de Ulisses: a alegria do reencontro e do reconhecimento, a relação de amizade e lealdade recíproca com o animal, logo substituída pela tristeza da sua partida.

Senti há poucos dias na pele, o turbilhão de emoções contido naquela lágrima.

Acabado de chegar junto da minha mãe, cujas condições de saúde se agravaram muito demasiado depressa, e já não conseguia ver-me ou falar, mas que me quis parecer que ainda reagiu à minha presença, ao meu toque e à minha voz, antes de partir serenamente alguns minutos depois rodeada de quem lhe foi mais próximo nas últimas cinco décadas e que me fez recordar, de imediato as emoções que me traz esta passagem da Odisseia, enquanto soltava uma única lágrima.

Estou absolutamente convencido de que a minha mãe foi uma pessoa feliz, que amou e foi amada, que tentou sempre fazer muitas coisas e ajudar quem podia, procurando sempre empoderar essas pessoas, para que alcançassem os seus objetivos. Esse ensinamento é um legado que procurarei sempre honrar e transmitir.

Aquela lágrima de tristeza pela sua partida, a empatia que senti pela tristeza de quem me rodava naquela circunstância é, simultaneamente, a recordação de inúmeros momentos. Daqueles que foram tão bons que não deixaram memórias concretas, só vagas notas de cheiros, toque, luz, paladar e sons, indefinidos e muitas emoções associadas. Ainda que pareça uma lágrima triste, é apenas a saudade desses irrepetíveis momentos muito felizes.

É também isto nos torna humanos, a capacidade de transformar aquilo que nos entristece, e desagrada em força e energia criativa para mudar o nosso futuro.

Hoje é o meu primeiro aniversário como órfão. Se, porventura, mais logo me cair nova lágrima, a minha preocupação não será a de a esconder, como Ulisses fez com Eumeu, será a de a sentir como de alegria. A alegria de celebrar a minha vida com toda a gente que a tem povoado. Mas também a alegria, quiçá mais interior, de celebrar, de agradecer a vida de quem me deu vida e a certeza de que continuarei a lutar por ser uma pessoa melhor.

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