A lua cheia ergue-se atrás do Monte Verde, sobe bem alto e torna a noite clara em toda a ilha. O mar fica cor de prata e a areia cintila na praia e nos caminhos. Uma lividez fantasmagórica assenhora-se da vila, entranha-se nas coisas, nas árvores, nas pessoas que circulam na praça central.
O juiz presidente da Comarca é o último a chegar ao restaurante do Hotel da Vila. Está um pouco bêbado, tem o cabelo molhado e cheira a alfazema e aguardente.
– Peço uma bebida e declaro aberta a sessão – diz com grande espalhafato.
O grupo está reunido na mesa do meio, banhado pela luz do candeeiro principal. Folheiam os cadernos em silêncio, demoram-se numa ou noutra página, suspiram praticamente todos ao mesmo tempo e eu penso: Será que já escrevi isto?
São seis cadernos, para seis pessoas.
Os cadernos do homem.
Três têm capa dura: uma é azul com lombada vermelha, outra preta com lombada cinzenta e outra totalmente preta (um Moleskine clássico). Os restantes são de capa mole: uma é amarelo canário (um vulgar caderno escolar), outra preta muito fina e outra enramada em tons de azul e castanho. Todos os cadernos são A5.
– Nota-se que não há ordem nestes cadernos – diz o administrador do Município. – É uma grande confusão!
– Não me diga que pensava encontrar aí o sentido das nossas vidas?! – Dispara o juiz, ocupando um lugar à mesa. – A solução, meus caros, é começarmos a ler a eito. Se alguma coisa há nestes cadernos, alguma coisa haveremos de encontrar.
Deita a mão ao caderno de capa azul com lombada vermelha, abre-o na primeira página e, deparando-se com uma caligrafia fácil, começa a ler em voz alta:
– Falecimentos sucessivos. Duas crianças morreram no mesmo dia e logo a seguir o irmão mais velho saltou de um camião em andamento, ao se aperceber que seguia em sentido contrário ao que pretendia, e também morreu estatelado no asfalto.
O juiz presidente da Comarca interrompe a leitura e desabafa:
– Há gente muito estúpida neste mundo!
Bebe um pouco de aguardente e prossegue:
– Depois, o pai travou. Ou seja, um dia acordou e constatou que não conseguia mexer-se, não conseguia sair da cama, não conseguia falar, nem comer, nem fazer as necessidades, não conseguia fazer nada.
O juiz revira os olhos, suspira, passa algumas folhas do caderno, enquanto murmura blá-blá, blá-blá, até que se detém e solta mais leitura em voz alta:
– Anfíbio foi um dos alunos mais inteligentes que passaram por esta escola. Um dia, o pai instalou-o em casa de um amigo que tinha saído em viagem. A missão de Anfíbio era manter a casa ocupada, para afastar a atenção dos ladrões. Tudo estava a correr bem, mas de repente Anfíbio acordou com uma ideia estrambólica, vinda não se sabe de onde, e começou a vender o recheio da casa aos ladrões.
– Agora, oiçam esta – interrompe o administrador do Município, que está na posse do caderno de capa preta com lombada cinzenta, ao mesmo tempo que eu insisto no pensamento: Será que já escrevi isto?
– Vieram chamar o Silvestre, chefe dos eletricistas, por causa de uma cobra que tinha entrado na sua casa. Silvestre correu desenfreado para casa e, de facto, encontrou uma cobra de metro e meio, talvez dois, enrolada na cadeira de bambu em que ele, apenas ele, se senta. O trono usurpado! Silvestre entra em delírio. Vai buscar uma catana e mata a cobra, corta-a em quatro pedaços e verifica que tem o estômago vazio. Sente-se aliviado por isso, embora não saiba explicar porquê. Seja como for, a consciência diz-lhe que se a cobra tivesse comido algo isso seria um problema sério. Depois, Silvestre pendura um pedaço de cobra em cada canto da casa, para que todos vejam que venceu o feitiço e eu não consigo largar o pensamento: Será que já escrevi isto?
Cada membro do estranho clube de leitura tem um caderno consigo – os meus cadernos –, exceto o papagaio Pita, que dorme com a cabeça enterrada numa asa. Aborrece-o este tipo de atividade, em que as pessoas deixam de ser elas próprias para viver outras vidas. Neste momento, estão todos quietos, absortos em si, diluídos no seu lugar e no seu caderno, ou seja, no meu mundo. Todos, menos o dono do Hotel da Vila, que agora mesmo se debruça à janela e, desassossegado, observa a praça ao luar.
Ele tem medo que eu apareça de repente...