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Artigo de Opinião

Advogada

18/03/2022 08:00

As folhas das canas-de-açúcar que até há poucos dias dançavam ao vento metalizando a paisagem darão lugar a carecas varas suculentas esperando ser "socadas" pelos trabalhadores sazonais e biscateiros que aguardavam, mais ou menos ansiosos, por esta época. A agora palha dourada e cortante da cana será aproveitada para alimentar a terra onde as seguintes renascerão e assim, sucessivamente, enquanto o caule valioso será prensado até a última gota do precioso líquido se tornando mel e depois bolo, broa, poncha…

Embora ainda hoje se vejam os senhores Agentes da PSP a guardar os carros de canas à porta das fábricas de transformação, a verdade é que os tempos áureos da "mafia de las canas" foi lá atrás, lá para os idos do milénio passado. Aquele milénio em que molhos de canas enrolados em vigas metálicas, alguns com mais de cem quilos, eram transportados às costas, das veredas inacessíveis até os caminhos onde seriam atiradas, por cima do ombro e ao som dum gemido longo, para as carroceiras incomodadas, a se balançar, com enfado, a cada depósito.

Esses carros, alugados a empresas de transporte de mercadorias, como a do Catrina, e até a particulares, ficavam amiúde estacionados durante a noite aguardando o carregamento total para seguirem viagem. Eram as noites em que a "mafia de las canas" agia, ludibriando o vigilante designado para tão mui nobre tarefa, logravam retirar algumas canas que seriam, depois, partidas, descascadas e partilhadas, tais produtos do saque e, melhor, mascadas até o sumo extravasar a cavidade bucal, encher o estômago de garapa, a tal garapa que se ouviria "enxugalhar" ladeira abaixo quando o vigilante se apercebesse do ataque pirata, e os perseguisse infrutiferamente.

Outra tática da "mafia de las canas" era prospetar e selecionar o meio de transporte mais carregado, logo, mais lento e aguardar o sofrido arranque que desembocaria num andamento vagaroso, a se arrastar. Tão lento que, selecionar a mais solta, segurar na ponta e deixar o veículo avançar seria o suficiente para ter a sobremesa do dia.

Hoje, felizmente para o produtor, não há necessidade de deitar mão, e estômago, à aquisição ilícita de cana-de-açúcar. As crianças e jovens têm o açúcar na forma processada e não se interessam pelo trabalho que dá o natural: "socar", desfolhar, descascar, cortar os rolinhos e chupar vigorosamente. A "mafia de las canas" extinguiu-se naturalmente e a procura desceu ao ponto de serem acessíveis, as canas, as quem as quiser "engenhar".

O "engenho do Lombo de São João", esta que vos fala, envelheceu deixando carimbadas nas mãos as cicatrizes das canas cujo descascamento não correu tão bem, deixando escorrer em simbiose entre dedos e polpa suculenta sangue que se fundiria entre uma lambidela e outra, ora na carne viva, ora na cana. Hoje, as "socas" que meu pai plantou só para mim, nos anos noventa, estão mais ou menos abandonadas, restando a oferecida pelo Sr. Piloto que carrego às costas, para a cidade, com o orgulho de ser pontassolense.

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