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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

3/10/2025 08:00

O homem deixou o caderno aberto em cima da mesa e ausentou-se. O restaurante ficou vazio e o dono, que estava atrás do balcão fingindo-se distraído, correu para lá. Debruçou-se sobre a escrita e leu que Hoje, cerca das 14 horas, quando estava absorto nas Notas Contemporâneas do Eça, eclodiu um assobio nos meus ouvidos que ainda ressoa. É como uma cigarra a cantar ininterruptamente. Depois, aproximei-me da porta, querendo-o dissipar com a ajuda dos ruídos do exterior, mas lá fora surgiu um canto de inseto ainda agudo, de modo que agora oiço cigarras dentro e fora da cabeça.

O dono do restaurante sentiu-se confuso e preparava-se para prosseguir a leitura, mas antes espreitou pela janela e viu o cão do homem sentado na praça e o cão, cujo nome era Palavra, observava-o com os olhos brilhantes, o focinho a cheirar o ar na sua direção e as orelhas pretas, quebradas nas pontas, em posição de alerta. Estremeceu. Ver o cão foi como ver o homem. Sentiu-se apanhado em flagrante e, por um instante, pensou que o bicho haveria de contar tudo ao dono, ou não fosse o seu nome Palavra.

À noite, falou disto ao administrador do município e no dia seguinte o administrador relatou o acontecimento no consultório do doutor Dedo Mulloia, onde entrou de rompante por causa de um acidente que tinha sofrido ao acordar. Naquele momento, o doutor estava a consertar o segundo molar superior do lado direito do juiz presidente da comarca. O juiz andava bêbado há três semanas, pois utilizava aguardente para combater a maldita dor. Estimulado pelos vapores etílicos, o seu cinismo atingira níveis deveras insuportáveis e, como já ninguém o podia aturar, decidiu recorrer ao médico, precisamente no dia em que este assinalava três décadas de permanência na ilha.

Dedo Mulloia fora lá parar quando tinha 40 anos, movido pelos demónios de um grande desgosto de amor e também por respeito à vida, pois faltava-lhe bem pouco para premir o gatilho e rebentar com os miolos. Em boa hora decidiu fugir e levou consigo uma arca com todo o equipamento necessário ao exercício da atividade, no fundo, o essencial do consultório que tinha montado no centro da sua cidade continental, febril e cosmopolita, onde pretendia enriquecer e viver à boa maneira burguesa. Contudo, do nada surgiu aquela mulher. Linda de morrer, impossível de entender. Os sonhos agigantaram-se dentro de si, quase perderam as estribeiras, mas subitamente explodiram como um balão picado por uma agulha: ela traiu-o.

Desde então, todos os dias, algures no dobrar de um segundo, a lembrança do desgosto atingia a cabeça do doutor Dedo Mulloia como uma seta envenenada. Hoje, decorridos trinta anos, trespassou-o no preciso momento em que o administrador do município irrompeu no consultório com o sobrolho esquerdo a sangrar e um grande hematoma na testa, estando ele debruçado sobre o segundo molar superior do lado direito do presidente da comarca.

– Você tem de me arranjar a cara! – Disse o administrador aos gritos.

O doutor deu um salto dentro da alma. Se havia coisa que o irritava solenemente era gente aos berros, sobretudo quando lhe quebravam o devaneio.

– Raios partam essa sua mania de falar aos gritos!

– Tenho a cara desfeita – disse o administrador, desesperado.

– Você tem sempre a cara desfeita, ou não fosse político – arremessou o juiz, aproveitando a pausa no arranjo do dente.

O doutor Dedo Mulloia observou as feridas na tromba do administrador e viu que não eram graves.

– Sente-se aí e espere – disse.

O administrador abancou-se e depois, já mais calmo, desabafou:

– Foi uma estupidez ter mudado a posição dos móveis no quarto.

O doutor soltou uma gargalhada e o juiz expeliu um grunhido de gozo e, nisto, o administrador pôs-se a contar a história do dono do restaurante, que no dia anterior fora espreitar o caderno do homem e de repente deparou-se com o cão especado na praça a olhar para si e ficou cheio de medo e quase perdeu o juízo por causa disso.

– Ele até insinuou que o cão é capaz de falar – disse o administrador. – Você acha isto normal, doutor?!

O doutor Dedo Mulloia deu por terminado o trabalho na boca do juiz presidente de comarca e, virando-se para o administrador do município, disse:

– Quem mais sente, menos fala.

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