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Artigo de Opinião

ÀS VEZES VOO. ÀS VEZES CAIO

Jornalista

28/08/2023 03:49

O dia chega como um raio apontado ao peito que não o reconhece mais, mas uma flor há-de persistir à dureza da rocha, e eu hei-de adormecer como a mulher plácida que morre sem medo dessa última e desalmada aparição, pelo fundo da costela que não pôde afiar como dantes o braço do mar. Eu sou a mulher que a rocha desgastou e a flor não viu, o animal mais íngreme da floresta invisível onde Deus morre todas as noites, como se fosse homem, como se fosse meu.

A terra remexe o céu procurando possibilidades expiradas sobre um nó que arde já desfeito, mas eu continuo por cá, no lugar fulguroso que herdei das tuas mãos, com a alegria da criança que lambe esgazeada a sua primeira ferida. No dia em que te vi chegar, soube, por fim, da existência esplendente do mar, da sua metamorfose completa de vazios que não hão-de nunca ser preenchidos. E, então, entrei, batida por uma lentidão que só conhecia de mim, de dentro; e, no entanto, ali estava ela, por fora, armada como uma escarpa sobre o fim de um corpo, querendo extenuar-se nesse fim abrupto para sempre procurado.

As minhas mãos não sabem já o caminho do mar - que susto -, não sabem ainda da ilha interrompida por um corpo sem o tempo da tempestade, sem o milagre de se saber rocha que a maré devolve até que não possa mais morrer.

Vou escrevendo, por agora, mas temo deixar de conseguir fazê-lo; pressinto que muito em breve. Não sei se a mão que escreve nasce de mim, deste corpo que demorou tanto a saber-se corpo e que, por vezes, torna a desaparecer no escuro, como um fluido longo que afinal nunca se transformará em carne. Escrevo, porém, para que a mão começada permaneça no equívoco descampado desse corpo; não sei se por egoísmo ou mera sobrevivência. Pela beleza não, nunca. A poesia é um fio sem palavras, longe da conspurcação das mãos que tentam tocá-la com uma leveza que se não pode. A beleza, essa, será sempre por aí; pelo impossível, pela angústia permanente de um vulto procurando ser corpo, ainda que. É por isso que esta mão que escreve deverá voltar para dentro, ao lugar do seu sentido único, onde unicamente sobreviverá.

Susana de Figueiredo escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas.

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