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Artigo de Opinião

silviamariamata@gmail.com

23/10/2022 08:00

Com tudo assente no rol, não havia que enganar. Depois desta estrefega toda, ainda se dava ao trabalho de apanhar flores, os espigos, quando os havia, para vender pelos caminhos ou então no mercado. Às vezes, saía-se mal no negócio, ninguém lhe comprava nada. Acontece! Bom, bom, era o pedacinho, ao cair da tarde, com os filhos à volta, que se sentava no terreiro à sombra da ameixieira, as pernas estendidas a descansar e dava um ponto no bordado para a Casa Leacock ou Casa Patrício Gouveia, grandes firmas na Madeira do antigamente.

Um dia, lá começou a "dar bordados" às mulheres das redondezas. Passou a ser uma espécie de agente da Casa de Bordados. Lá ia ela carregada com as grandes trouxas à cabeça ou num braçado por aí abaixo, ou por aí acima, com os maços de bordados, todos separados e organizados, cada um amarrado por uma tira de linho e embrulhado em papel pardo, com o bilhete preso para se escrever o nome da bordadeira e o número do Cartão da Caixa, que era como se dizia naquele tempo o número de Beneficiário ou de Utente. Cada embrulho podia conter duas dúzias de lenços de mão para fazer o ponto de sombra ou uma dúzia de fronhas de pontuana - seria ponto ana? - ou uma dúzia de saias de seda para fazer na roda o ponto francês ou duas dúzias de panos de tabuleiro para fazer os bastidos e o ponto de corda. E lá ia ela sempre ajoujada, para cima ou para baixo, palmilhando o Caminho do Palheiro para despachar aquilo tudo, receber os dinheiros e entregar depois às bordadeiras, no sossego da sua casa.

Um dia teve um azedume. A Amélia não estava a fazer o bordado bem feito. O gerente da Casa já lhe tinha feito o reparo. Cheia de pena da Amélia, minha avó pegou em si e chamou por ela. Que isto não pode ser, Amélia! Que eles lá em baixo não vão aceitar mais! A Amélia que sim senhora, ti Belmira, eu vou fazer bem feito! Mas como quem não sabe não sabe, o bordado da Amélia que era uma triste coisa de se ver, assim continuou a ser. Todos sabiam! Só o coração de minha avó, cheio de misericórdia daquela triste, via naquele lar frio, aquele marido que desterrava tudo em grandes bebedeiras de quartos de litro; aqueles pequenos a crescer; a conta da venda por pagar; o leiteiro que já não fiava; a ceia que já se escusava. E lá se ia compadecendo! O bordado sempre era um remedeio.

Até um dia! E nesse dia, estava à porta da Casa de Bordados, como minha avó, um ror de mulheres que eram agentes, como ela, para entregarem as suas trouxas de trabalho. Atrás do grande balcão de madeira com uma altura de embrulhos de papel pardo, o gerente, cara de poucos amigos; o mulherio, do lado de fora, afligido.

Quando chegou a vez de minha avó, tudo foi desembrulhado com cuidado e passado a pente fino cada maço! Este passa! Este escapa! E sempre assim! O seguinte era o maço de bordados da Amélia e um friozinho do chão para cima começou a alagar de suor as têmporas da ti Belmira. Bem, já se sabe que o gerente, ao ver aquilo, olhou para minha avó nos olhos e disse:

- Este não passa! Para trás! Eu vou é riscá-la da nossa lista! Já estava avisada! E minha avó, altiva e grande, respondeu:

- Pois sim! Eu não quero é ser riscada das portas do céu! Contra o Altíssimo, o senhor nada pode. Fizeram-se as contas com o lápis de pau, minha avó recebeu os dinheiros, acomodou o bordado da Amélia na trouxa vazia e virou costas. Bom dia! Pelo caminho, pisando pedras e caboucos, fervilhava-lhe no peito uma grande coragem. Em frente!

Nada de mais aconteceu! E a vida não parou por causa daquela riscadura. O mundo continuou a girar como já girava dantes. A Amélia aprendeu a aprender e a ti Belmira, com aquela carta de alforria, pôs-se a marchar para outros sonhos! Lá fora, chegou a Primavera que deu lugar ao Verão e depois ao Outono de folhas amarelas e de brilhos de luz cor de sol. Veio o Inverno com as suas geadas e musgos de barbas verdes. Que encanto! O mundo sempre a rodar, nós também!

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