O bombeiro Elmo Manuel encolheu os ombros, ou melhor, enterrou a cabeça nos ombros e manteve-se indiferente durante um ou dois minutos. De repente, sentiu pena por nunca ter sido dado a leituras, mas acabou por reconhecer que, na verdade, pouco ou nada se importava com isso. Seja como for, estava agora fascinado com o livrinho que tinha resgatado do incêndio. Faltava um segundo para as chamas o devorarem, quando lhe deitou a mão. Foi um movimento instintivo, sem qualquer explicação.

Abriu-o ao calha e leu, abismado, que o bombeiro Elmo Manuel decidira, depois ter concluído que nunca fora dado a leituras, abrir o livro ao calha, pondo-se a ler também os pensamentos que a surpresa de ter aberto o livro ao calha lhe haviam suscitado e que ele próprio mal sabia expressar, embora os visse muito bem expressos no livro e sentiu uma vertigem, uma náusea rápida e profunda.

– Este incêndio fez-me mal à cabeça! – Pensou, ou melhor, disse-o em voz alta e repetiu:

– Este incêndio fez-me mal à cabeça!

O livro não tinha título, mas o título estava na sua mente, embora fosse incapaz de o decifrar. Também não era feita referência ao autor, mas ele sabia quem o escrevera e o seu nome era impronunciável. As páginas não estavam numeradas, porém ele tinha a certeza absoluta de que eram 150, nem mais, nem menos, tal como aconteceu comigo quando sonhei que tinha sido eu a encontrar este livro de 150 páginas, sem título e sem autor identificado.

Depois, o bombeiro Elmo Manuel leu que o facto de estar a ler isto, palavra por palavra, o levava a pensar, pela primeira vez na vida, que a leitura abeira as pessoas do limiar da loucura, ou seja, pensou que ia ficar louco caso decidisse dar mais um passo em frente, um só que fosse.

– Este incêndio fez-me mal à cabeça! – Disse ele em voz alta e foi precisamente isso que eu pensei no meu sonho: mais uma palavra e enlouqueço.

Assustado, o bombeiro Elmo Manuel fechou o livro e, vendo o fogo crescer diante dos olhos – o maldito incêndio já durava há três dias e estava sempre a ocorrer reacendimentos –, sentiu-se impotente e, por um momento, perdeu-se de si e o tempo transfigurou-se, passou a ser outro tempo, de modo que agora, dentro do meu sonho, a última coisa que queria fazer era entregar o livro aos fascistas da República Insular de São Barnabé – que, como devem calcular, é a Região Autónoma da Madeira virada do avesso e posta a enxugar ao sol –, mas o agente da polícia secreta estava ali de mão estendida e tinha uma arma no olhar apontada a si, a mim, a ti, a nós, a eles.

Deus que me perdoe, pensou o bombeiro Elmo Manuel, Deus me perdoe, mas preferia entregar a minha mulher à prostituição do que vos dar o livro, ou até mesmo, Deus que me perdoe, pensou ele, seria capaz de entregar a minha filha. No entanto, mesmo querendo o livro para sempre, continuava a não ser dado a leituras e, pior ainda, considerava desconcertantemente que uma pessoa nunca sabe para o que está na vida, pelo que, da mesma forma que se dispusera a aceitar a mulher e a filha como putas só para ficar com o livrinho, também o entregou sem hesitar ao agente da polícia secreta.

– Obrigado – disse o agente.

– Não tem de quê – respondeu ele e só então percebeu que a última coisa que lera fora precisamente o que acabara de acontecer, nem mais, nem menos.

O agente disse:

– Obrigado.

Ele respondeu:

– Não tem de quê.

O livro estivera na sua posse durante 23 anos, ou talvez 49, ou se calhar 181 e podemos dizer que eram amantes, ele e o livro. Por isso, a hora da despedida foi a mais dura e cruel da sua vida. Foi a hora da morte do amor. E isto é incrível, porque o bombeiro Elmo Manuel, além de nunca ter sido dado a leituras, sofre de um pragmatismo atroz, rude e básico, um pragmatismo que reduz a existência a meia dúzia de movimentos, meia dúzia de palavras, meia dúzia de emoções em chão firme, sempre em chão firme, nunca no abismo.

No entanto, ele amava o livro e eu também.