Recentemente dei por mim a ver um humorista francês, o Paul Cabannes — vive no Brasil e fala um português com aquele veludo que nem os poetas se atrevem a inventar. Contava uma situação simples, mas que me ficou na cabeça.
Chega ao balcão de um hotel e pede para aquecer a comida. A rececionista europeia, certinha, responde logo: “Infelizmente não temos micro-ondas.”
O colega dela, latino, olha para o lado e diz: “Dá cá, eu aqueço isso no micro-ondas dos funcionários.”
E eu pensei: está aqui o Mundo todo, condensado num tupperware.
A nossa Laura Flores, tiktoker madeirense de excelência, já anda há meses a fazer humor com esta nossa mania da burocracia. Seja nos CTT a tentar levantar um reembolso, seja numa repartição qualquer: é sempre um papel que falta, uma senha que afinal era outra, uma hora que afinal era antes, uma agência que não deu o papel do papel que comprova o outro papel que vem de um teste de ADN que ninguém pediu. Ir a um destes sítios é como entrar num buraco negro: o tempo entra, mas não sai.
Há dias conversava com um amigo alemão, empresário, que viveu anos na América do Sul. Dizia-me ele que lá havia corrupção para tudo, até para garantir proteção... da própria polícia que o extorquia. Depois veio para Portugal. Sente o mesmo — mas embrulhado de forma mais elegante: imposto, taxa, taxinha, sobretaxa, contribuição especial, contribuição extraordinária, regularização excecional, uma esmola ao sistema só para existir.
E isto fez-me pensar.
Não só nas diferenças culturais entre continentes, mas na própria noção de humanidade — e, já agora, nos limites da lei e se todas fazem mesmo sentido.
O famoso sketch dos Gato Fedorento do “papel” não envelhece porque o país também não muda. Para resolver qualquer coisa é sempre preciso um papel... mas nunca sabemos qual, como se fosse um processo kafkiano.
E exigem-se documentos que nem eles conseguem justificar. Como pode o Estado pedir a um cidadão uma declaração de não dívida... ao próprio Estado?
Não bastava cruzarem os sistemas?
Não, tem de ser impresso, carimbado, entregue, validado, autenticado, rubricado e, claro, pago.
E depois há o clássico: comprovativo de morada e atestado de residência.
“São coisas diferentes”, dizem. Claro que são... duas maneiras de dizer a mesma coisa e cobrar em duplicado.
Mas se um funcionário, por alma de santo, tentar desenlear o emaranhado, logo se sussurra “isso é corrupção”. Não, não é – humanidade.
Mas como o sistema não admite humanidade, seguimos todos presos aos novelos de linha que alguém teceu para justificar a própria existência.
É como dizia o Paul Cabannes: em alguns lugares, se alguém chega com um prato para aquecer, há sempre uma alma que resolve. Aqui, seguimos o regulamento até ao fim — mesmo que isso signifique deixar o prato frio e a pessoa pior. A Gestão da Qualidade que foi elevada no Japão, seguia padrões e regras estandardizadas para uniformizar processos e garantir a celeridade dos processos. Cá os padrões e regras é para travar qualquer processo, por mais simples que seja.
Há vídeos de aulas, ficcionados, onde um professor expulsa um aluno sem motivo e logo pergunta “o que é a lei?” A lei existe para haver justiça. E a justiça existe para quê?
Para garantir que ninguém aceita uma injustiça calado. Que ninguém perde a dignidade.
Que ninguém baixa a cabeça só porque a outra pessoa é “alguém”. E mais do que isso:
A lei devia existir para reforçar a humanidade, não para sufocá-la.
Lembro-me de uma história que o Gonçalo Nuno me contou de quando ele liderava uma associação de animais abandonados, numa entrevista lamentava a falta de apoios e a dificuldade em ter comida para os animais.
No dia seguinte apareceu uma senhora — pobre, provavelmente com dificuldades até para alimentar-se — a entregar um pacote de leite Estrelícia. “Não é muito”, disse ela. “Mas é o que tenho. E dou-o aos animais, todos os dias vou trazer o que puder.” Aquele pacote de leite valia mais do que uma doação bilionária.
Porque o peso real das coisas não está no preço, está no sacrifício.
Isto é humanidade.
Isto são direitos.
Isto é o que deveríamos defender todos os dias — antes do papel, antes da taxa, antes da lei que só atrapalha a nossa Humanidade.