Sim, o dono do Hotel da Vila observa a praça central ao luar desassossegado, muito desassossegado, porque tem medo que eu apareça de repente, mas o administrador do Município chama-o à razão, lembrando-lhe que o homem saíra de manhã cedo e disse que só voltaria na próxima sexta-feira.
– Nunca se sabe – responde o dono do hotel, inquieto, e regressa à mesa na qual o grupo está reunido, no meio da sala, debaixo do candeeiro principal.
São seis pessoas e cada uma está na posse de um dos meus cadernos – os cadernos do homem, dizem eles. Sabendo que eu estaria fora algum tempo e não havendo mais hóspedes no hotel, decidiram ir ao meu quarto buscar os cadernos e organizaram uma sessão de leitura ali mesmo, no restaurante. Com mais ou menos resistência, a decisão foi aprovada por unanimidade, descontando o voto contra do papagaio Pita, que, por se tratar de um animal irracional, não entrou na contabilidade.
– Prestem atenção a esta passagem – diz o administrador do Município e avança:
– Se este país não me matar e os seus absurdos não me encherem de impossibilidades e das impossibilidades não nascer demasiado ódio e fadiga, então hei de cumprir o plano.
– Que plano será esse? – Suspira do dono do hotel, desviando os olhos para a janela.
Ao mesmo tempo, o juiz presidente da Comarca pede que se oiça outro leitor, por exemplo, o doutor Dedo Mulloia, diz ele, cada vez mais embriagado, leia lá uma passagem do seu caderno, doutor.
O doutor Dedo Mulloia está na posse do Moleskine, o mais volumoso dos seis cadernos. Neste momento, atravessa-o uma enorme tristeza, a que se junta uma tremenda contrariedade por estar envolvido naquele ato de violação do pensamento alheio, através do qual se viola o ser inteiro. E, como se isso não bastasse, há vários dias que o assalta uma terrível sensação de inexistência. Começou por ser vaga, quase impercetível, mas foi crescendo e cresceu desalmadamente e afundou-se no mais íntimo de si, de modo que hoje o doutor caminha em plena estrada da irrealidade e baixa os olhos para o caderno e ouve uma voz vinda de outro tempo e de outro espaço e não percebe que é a sua própria voz:
– Fez-me bem confessar os sonhos. Afastei os fantasmas. Nunca mais sonhei. Peço desculpa por te cansar com estas coisas do Trópico de Capricórnio. Não te zangues comigo. Escreve-me sempre que possas, a contar coisas aí do Norte. Um beijo, com carinho.
– Que sonhos serão esses? – Sussurra o administrador do Município.
O doutor Dedo Mulloia passa umas folhas para trás e lê com voz débil:
– Os sonhos são o pior deste país. Nunca os meus sonhos foram tão ardilosos e enganadores como os que sonho aqui. Acredita, são os sonhos que me fazem sofrer, mais ainda do que a solidão, a distância e a saudade. São os sonhos que me fazem chorar no hemisfério sul. Sonho sempre com o passado feliz. A minha mãe está viva e tu estás comigo, tal como te conheci há dez anos, há vinte, há trinta... O carro está novo e a ilha é redescoberta todos os dias. Vamos os dois, tu e eu, por um caminho na serra cheio de borboletas e do meu ser brota uma esperança mágica, uma esperança impossível, uma esperança morta há muito tempo, como bem sabes... É incrível, mas a vida quer-me só e triste.
– Que tristeza! – Murmura o juiz presidente da Comarca e logo de seguida, como se não tivesse sentido o que acabava de dizer, vira-se para o padre Noha e ordena que leia uma passagem do seu caderno.
O padre Noha tem o caderno preto de capa mole, o mais fino de todos. A leitura não é fácil, porque a letra é miudinha e as linhas estão encavalitadas umas nas outras. Mas o padre quer desviar as atenções de si e não hesita:
– Às vezes, para me acalmar e afastar a ideia da morte, uma ideia que corre leve à minha frente, rezo. Faço sempre a mesma oração. Adoto a posição fetal, como quem se encolhe no interior de um templo, e digo tudo o que me vem à cabeça, tudo.
O juiz presidente da Comarca bate com a mão aberta em cima da mesa e interrompe a leitura.
– É uma reza pouco ortodoxa, não acha padre? – Diz ele. – Ainda assim, parece-me um excelente caminho para chegar ao Paraíso. Ao mesmo nível deste aqui... – O juiz levanta o copo de aguardente e solta uma gargalhada e a gargalhada atravessa a janela e ecoa na praça vazia ao luar, onde, como se sabe, eu hei de aparecer de repente...