Se queres salvar a alma antes que a morte te leve – disse-me ele –, sejas rico ou pobre, nunca dês nada por adquirido, seja lá o que for, e jamais consideres a relação com o outro definitiva e incondicional, mesmo que o outro seja teu escravo ou sangue do teu sangue. De resto – disse-me ele –, faz o que quiseres. Reza, fornica, pragueja, protesta, ama infinitamente, sofre, vai ao ginásio, corre mundo sem parar, viaja, envenena-te e depois purifica-te e a seguir envenena-te outra vez...

É claro que ele estava completamente bêbado, ou melhor, estava completamente mamado, para utilizar uma expressão madeirense, que fica sempre bem quando se escreve alicerçado na ilha. Só na meia hora em que esteve a desabafar comigo, bebeu duas cervejas de meio litro e dois shots de uísque, mas tudo indicava que antes tinha bebido muito mais.

Quando eu cheguei ao bar, já depois das 23 horas, o gajo estava numa ladrada infernal, a meter-se com os empregados e os clientes. Não era do género agressivo, mas estava a chatear toda a gente, embora ninguém lhe prestasse atenção. Assim que me avistou, sentado ao balcão, veio logo ter comigo.

– I’m a loser.

E depois, em português:

– Ninguém me liga.

Devia ter uns 60 anos e eu não o conhecia de lado nenhum, mas ele começou a falar comigo como se tivéssemos andado juntos na escola primária, na Quinta das Freiras, ou como se tivéssemos sido camaradas na tropa, em Mafra, ou como se tivéssemos trabalhado na mesma empresa durante muitos anos, sei lá, o tipo pôs-se a falar comigo como se me conhecesse de ginjeira, ora em português, ora em inglês, numa enxurrada impossível de conter, sempre a falar, e as palavras pareciam pedras a ribombar na ribeira em noite de tempestade e os pensamentos também eram pedregulhos a rolar pela ribeira abaixo.

– Faz o que quiseres – dizia ele. – Finge, representa, aldraba, trai, parte uma perna, faz ioga, medita, faz o manguito ao sistema, vota em todos os partidos, da extrema-direita à extrema-esquerda, whatever, vive o dia inteiro ligado, sempre online, dorme abraçado ao telemóvel e faz tudo para que ele te ame e escravize, faz tudo para que seja sempre ele o primeiro a te mostrar como está o tempo e nunca a janela do teu quarto, puta que pariu a janela do teu quarto, mother fucker, faz tudo para que a inteligência artificial sonhe por ti, faz tudo o que quiseres, tudo – dizia ele –, but, if you want to save your soul before you die, nunca, never, jamais, em tempo algum, dês nada nem ninguém por adquirido, seja lá o que for, seja lá quem for.

Ultimou a cerveja, pediu outra. Bebeu o shot, pediu outro.

– Nobody! Nothing! – Disse ele.

Como é óbvio, não foi exatamente assim que ele falou, quero dizer, não consigo reproduzir tintim por tintim o que ele disse, tirando as partes em inglês, que as fixei bem, mas a toada geral da conversa foi mais ou menos esta e eu fiquei sem perceber se o gajo era de cá ou estrangeiro, talvez fosse emigrante, pensei, ou filho de emigrantes, não sei, e entretanto ele já estava mais calmo e começava também a ficar distante, parado, ausente, ao passo que eu refletia sobre a magia que emana da conversação com desconhecidos, considerando que a certa altura parece que uma pessoa está a falar consiga mesma, pelo que não tem medo do que diz nem do que ouve, seja na língua materna ou numa língua estrangeira, seja aqui, num bar na Estrada Monumental, ou numa tasca no cabo do Inferno.

– Agora, my friend – disse ele –, se queres salvar o Mundo em vez de te salvares no Mundo, faz tudo ao contrário, que é como quem diz aceita, resigna-te e morre todos os dias cheio de esperança, full of hope.

Esfregou as mãos na cara, como se pretendesse limpar a bebedeira, ou apagar a própria existência, e disse:

– Como vês, é mais fácil salvar o Mundo.

Bebeu o shot e acrescentou:

– Sejas rico ou pobre.