Faz de conta que estou na beira de um abismo e dou um passo em falso. Caio e sei que vou morrer daqui a nada. O meu anjo da guarda, ou seja, a minha consciência, vem ter comigo e acompanha-me na queda.
– De que te lembras? – Pergunta-me.
– Dá-me um tema – peço-lhe.
O meu anjo da guarda diz:
– Cinema.
A conversa que se segue dura apenas o tempo que vai entre estar vivo e morto. Um milésimo de segundo. Talvez menos, muito menos. Sei lá. Ou então dura a eternidade que me espera após a morte.
Eu digo:
– Porra, vou morrer daqui a nada e não consigo dizer qual foi o filme da minha vida, mas se pensar no Cinema Santa Maria, na Zona Velha, por exemplo, lembro-me logo de Indiana Jones e os Salteadores da Arca Perdida, de Steven Spielberg. O cinema já não existe, mas é o que me salta à memória, porque vi-o lá quando estreou na Madeira, algures nos anos 80, e cheguei tarde e o lugar que me cabia, no balcão, não tinha o assento e eu afundei-me no vazio, provocando risos ao redor, no exato momento em que Harrison Ford fugia por um túnel abaixo à frente de uma esfera enorme que estava quase, quase a esmagá-lo.
– Muito bem! – Diz a minha consciência.
Eu prossigo:
– Se for no Casino, lembro-me sobretudo de Ran – Os Senhores da Guerra, de Akira Kurosawa, porque não percebi nada daquilo. Já agora, como vou morrer daqui a nada, vamos ao Cine Dom João: Lembro-me de Viva Zapata!, um filme de Elia Kazan, e também Lendas de Paixão, de Edward Zwick, mas não sei porquê. No Teatro Municipal Baltazar Dias ocorre-me apenas dois: Delicatessen, de Jean-Pierre Jeunet, porque julgava que era um drama e saiu-me uma comédia de partir o caco a rir, e Imperdoável, de Clint Eastwood, seguramente um dos melhores westerns. No Cine Deck, lembro-me apenas de Danças com Lobos, de Kevin Costner, e numa sala que havia no Marina Shopping lembro-me vagamente de ter visto Pulp Fiction e Braveheart. Também me ocorre Gladiador, no Camacha Shopping, e Titanic, no Anadia. Entretanto, no João Jardim vi o encantador Cinema Paraíso, sozinho na sala, e chorei, talvez pela primeira vez em adulto à conta da sétima arte. No Cine Parque lembro-me muito bem do Pinóquio, em desenhos animados, quando era miúdo, e mais tarde, na adolescência, também vi lá um filme pornográfico cujo título esqueci e não gostei nada, fiquei altamente constrangido.
O meu anjo da guarda está satisfeito comigo e parece que quer mudar de assunto, mas eu continuo:
– Na televisão, lembro-me de A Noite dos Mortos Vivos, de George Romero, que vi em casa das minhas tias e foi o melhor filme de terror de sempre, mais não seja porque era muito jovem e aquilo pareceu-me uma metáfora exemplar da vida e meteu-me mesmo muito medo, tanto que fiquei várias noites em claro. Depois, em Moçambique, onde vivi cinco anos, vi dois filmes na televisão que nunca mais esqueci – Tropa de Elite e Haverá Sangue – e no decurso das viagens de avião intercontinentais lembro-me apenas de Django Libertado, do Tarantino.
– Muito bem! – Diz o meu anjo da guarda.
– Contudo, nenhum deles é o filme da minha vida.
Nisto, pouso a esferográfica em cima do bloco e levanto os olhos, para recuperar fôlego face à escrita. Estou na zona dos restaurantes no Madeira Shopping, onde almocei tarde e correr, no decurso de uma jornada que parecia não ter fim. Ainda assim arranjei tempo para tomar notas sobre a minha existência naquele dia, como se fosse o guião para um filme. Olho em redor e vejo as pessoas espantadas para mim. Por um instante, convenço-me de que as pessoas estão mesmo espantadas para mim, a ver o meu filme, mas logo percebo que, afinal, eu é que estou espantado para elas e também sinto que estou quase a chegar ao fundo do abismo.
– Amor – diz a minha consciência.
E eu:
– Ainda temos tempo?