MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

Advogada

8/07/2022 08:00

As crianças atiram-se à água, à cama, aos ATL’s ou à casa dos avós.

As crianças de agora…

As do meu tempo, aquele longínquo que faz parecer a quem lê que pareço ter uns quarenta e dois anos (calúnias) eram bem diferentes. A primeira coisa a ser expelida eram os sapatos dos pés, iniciava-se a época da formação de sola multicamadas de epiderme resistente a espinhos de silvado e bebras podres. O rito iniciava-se com o lançamento da chinela à levada: aquela bela levada de rega, de chão de pedras que tanto contribui para infiltrações nas casas laterais que servia, e serve, também, como soporífero natural, relaxante e instrumento lúdico.

O lançamento da chinela consistia em atirar uma chinela de dedo, de plástico, comprada na Venda do Cerca ao fluxo apressado da água e persegui-la caminho abaixo.

Quase sempre corria bem, ou era apanhada na curva do caminho, ou já na reta da quinta, algumas vezes chegava ao tornadouro da Vargem, mas quando a "Francelha" achava de tapar a água e a pista não era pré verificada, lá ia chinela precipício abaixo a dizer adeus para a ribeira e das duas uma: ou atirava a outra ao mesmo destino e dizia que o cão tinha roído, ou chegava chinela sim, chinela não, com ar derrotado e ralhete preparado, afinal, aquilo entupia os tornadouros da água (as considerações ecológicas não eram, ainda, a principal fonte de preocupação da época).

Mais ecológica, não obstante, era a também apreciada "perseguição à pimpinela". Minha mãe, do alto do seus 1,57 m por 47 kilos, pendurava-se na latada a colher o apreciado fruto, que pelos vistos agora é exótico, e não raras vezes o deixava escapar por entre as mãos, ou por escorregarem, ou por os picos naturais da casca serem mais afiados que o esperado. Por baixo, no caminho, que já se percebeu ligeiramente inclinado, já esta que vos escreve esperava com avidez as que comprovariam o princípio de Newton para arrancar, com a tal sola multicamadas de epiderme, caminho abaixo qual antecessora de Obikwelu, com fogo no rabo no encalce das pimpinelas. Mais uma vez, algumas se salvavam, outras desapareciam para sempre nos buracos negros dos tornadouros, outras voltavam para cima no regaço da t’shirt ou do vestido como troféus que fariam parte da sopa de água-chilra, feita por alguém incumbido, contra pagamento, da tarefa e que me obrigariam a comer à noite.

Era vítima do meu próprio sucesso. Só tenho pena de não haver para lá uma árvore de ovos de chocolate, tenho a certeza que hoje seria uma atleta de sucesso.

Hoje a levada permanece, as suas vicissitudes também, mas as perseguições acabaram. No sítio cada vez menos crianças, cada vez mais estrangeiros reformados, cada vez mais imóveis inflacionados, cada vez menos genuinidade, cada vez mais…História. Dos altos e baixos dos meus quarenta e dois anos percebo, a minha vida já dá uma, história, que espero continuar a vos poder contar.

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