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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

31/10/2025 08:00

Apresento-vos o meu amigo Etraud Seriac. Estão a ver aquele indivíduo além, sentado na esplanada à vossa esquerda, a beber uma cerveja? Aquele que parece um intelectual, com óculos redondos, barba crescida e grisalha, o cabelo curto, rapado aos cantos e atrás – um corte bué vulgar hoje em dia –, estão a vê-lo? Pois aquele é o meu amigo Etraud Seriac. É um homem maduro, mas apenas em idade, como o resto da Humanidade. Está quase a completar 58 anos, agora em novembro, se não me engano, circunstância que intensificou bastante os seus pensamentos e conversas acerca da morte nos últimos tempos.

É compreensível, acho eu.

Só este mês, ele já me disse várias vezes que estamos todos simplesmente à espera da morte, o que é um terrível lugar-comum, bem vistas as coisas, tão antigo e popular como a consciência da morte e a própria morte em si, valha-nos Deus, mas que nos faz tremer de cima a baixo quando dito de uma certa forma, com uma certa entoação e numa certa hora do dia e da vida. Percebem?

Não sei se já vos aconteceu conversar com alguém que fala da morte como se a anunciasse para daqui a bocado, ou como se estivesse prestes a no-la apresentar pessoalmente. Pois bem, é desse modo que o meu amigo Etraud Seriac tem falado comigo nos últimos tempos e eu dou por mim a pensar coisas horríveis a seu respeito. Oxalá esteja enganado.

Enfim, é preciso notar que ele enfrenta graves dificuldades financeiras, porque está desempregado há muito tempo, pra aí há dez anos, e, como se isso não bastasse, não tem habilitações académicas, nem talento para nada. É quase analfabeto. A única coisa que sabe fazer mais ou menos bem é pensar, mas pensa sempre em vão. Também é capaz de sentir com alguma qualidade, mas sente sem razão.

– Somos milhões assim no mundo – diz-me ele. – Uma enorme turba de inúteis.

Eu encolho os ombros.

Se calhar, o gajo tem razão.

Às vezes, pergunto-lhe como Diabo consegue viver sem dinheiro e ele responde-me que é por causa do respirar, argumentando que estar vivo é uma tarefa mecânica e inconsciente, sem qualquer valor e ao alcance de todos. Já quando o apanho de bom humor e espírito aguçado, cínico, diz-me que tanto faz ser rei como escravo na hora da morte, vincando que essa é sempre a hora em que nos encontramos.

Agora, a sério, acho que já vos contei isto inúmeras vezes.

Escrevo aqui uma vez por semana há dez anos sem parar, pelo que é natural que me repita, ou que diga ininterruptamente a mesma coisa de maneiras diferentes, como se procurasse o caminho para o universo paralelo do meu ser. Afinal, sou sempre o mesmo, de modo que a história também é sempre a mesma.

George Orwell disse “Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar”. Da minha parte, também quero denunciar essa mentira, mas, por outro lado, suspeito que há uma verdade qualquer escondida na sombra e no avesso das palavras e eu quero descobri-la. Contudo, por mais que escreva, nunca chego lá.

Então, dou comigo sentado no banco do quintal, como o meu pai antes de morrer, exatamente como o meu pai antes de eu nascer, lá em cima em Santo António, ou lá em baixo no fim do mundo, na nossa casa algures numa curva da Estrada Comandante Camacho de Freitas, dou comigo ali a ver as mesmas coisas que o meu pai via, o voo do fura-bardos por cima dos eucaliptos, o senhor Carlos para cá e para lá na oficina, a água a correr na ribeira, o Tonecas estendido ao sol, o galo a cantar ao fundo, pois no fundo eu sou como uma árvore na roda do ano, ora frondosa, ora florida, ora esquelética, mas sempre a mesma árvore, sempre no mesmo lugar, como agora, neste outono, mostrando a parte de trás das folhas ao vento, antes de as perder novamente.

Bom, voltemos ao meu amigo Etraud Seriac...

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