O bombeiro Elmo Manuel esteve três dias sem ir a casa e sem comparecer no serviço, tendo passado a maior parte desse tempo a beber cerveja e a comer pepino com sal e vinagre, o seu acepipe preferido nos momentos de tristeza e desilusão. A fresca e arrepiante mistura de sabores compensava o vazio espiritual que ele sentia por ter perdido o livro, ainda que não tivesse consciência de que aquilo era um vazio espiritual. O bombeiro Elmo Manuel não conhecia tal conceito. Para ele, a expressão ‘vazio espiritual’ – se por acaso lhe viessem falar disso – não passava de duas palavras sem sentido. Dada a sua cabeça prática, a única coisa fora de esquadria que ele admitia era que uma pessoa nunca sabe para o que está na vida. Esta era a única filosofia, a única poesia, a única religião, a única política.
Uma pessoa nunca sabe para o que está na vida.
Parecendo que não, trata-se de uma orientação bastante ampla e angular, no âmbito da qual a pessoa tanto se agarra ao chão com unhas e dentes, como se expõe, alada e sem proteção, à passagem dos delírios – os tais vazios espirituais –, como este de ficar três dias sem ir a casa e sem comparecer no serviço.
E lá estava ele a chorar como um miserável, a beber cerveja como um miserável, a comer pepino salgado como um miserável.
O livro devia ser, de facto, muito importante, ou a polícia secreta da República Insular de São Barnabé – que, como já expliquei noutra crónica, é a Região Autónoma da Madeira virada do avesso e posta a enxugar ao sol – não o teria abordado, solicitando que lho entregasse, 23 anos depois de o ter resgatado no meio de um incêndio de grandes dimensões.
Já agora, importa saber o que é que o bombeiro Elmo Manuel fez com o livro durante esses 23 anos. A bem dizer, não fez nada. Além de o estimar, de o limpar todos os dias com um paninho dos que se usa para os óculos, de o amar sem saber porquê e de o contemplar como um santinho num altar caseiro, o bombeiro Elmo Manuel não fez nada com o livro, absolutamente nada.
Raras foram as vezes que se pôs a ler, porque não compreendia a narrativa e, sobretudo, porque não era dado a leituras. Ler era uma atividade (o termo atividade parecia-lhe excessivo aplicado ao ato de ler) extremamente maçadora e, como se isso não bastasse, tornava-se cada vez mais maçadora à medida que os anos passavam. No entanto, o bombeiro Elmo Manuel atribuía ao livrinho uma importância ilimitada, semelhante à importância que os colecionadores atribuem aos cacos mais inúteis, considerando que sem estes a coleção fica irremediavelmente cambada.
Esta fora, mais ou menos, a relação do bombeiro Elmo Manuel com o livro ao longo dos últimos 23 anos, até que os fascistas da polícia secreta lho arrancaram das mãos ou, vamos lá dizer, do coração. E o amor morreu...
Ao terceiro dia de bebedeira, tendo já comido uma dúzia de pepinos, o bombeiro Elmo Manuel achou-se, ao cair da noite, num bar sombrio na baixa da cidade, onde o seu ‘vazio espiritual’ haveria de chegar ao término. Aquilo tinha que acabar, porra! Um dia tinha que acabar!
Na ocasião, sentia-se maldisposto e tinha a vista turva, além de que via tudo em duplicado, ficando uma imagem das coisas sempre fixa e a outra – o duplo – a mover-se apressada para a esquerda, embora nunca chegasse a lado algum. Ainda assim, apercebeu-se de que estava diante de algo que lhe era familiar, mas também inquietante, extremamente inquietante. Porém, não era capaz de discernir o quê.
Às tantas, um indivíduo que estava sentado ao balcão, com dois bancos de intervalo, disse-lhe sem palavras que olhasse em frente, fazendo um gesto com o queixo.
O bombeiro Elmo Manuel tapou o olho esquerdo com a mão do mesmo lado, para evitar a fuga dos elementos e clarificar a imagem, e viu-se refletido no espelho que cobria a parede do bar, entre duas prateleiras de garrafas e copos.
– Raios me partam! – Disse.
– É isso – retorquiu o homem, com um sorriso entre cínico e angelical.
E foi então que o bombeiro Elmo Manuel decidiu regressar a casa, ao seio da família, como se costuma dizer, e no dia seguinte voltou ao serviço e nunca mais pensou no livro da sua vida. Ou, se calhar, continua a pensar nele todos os dias, mas nega o pensamento...