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Artigo de Opinião

Advogada

31/08/2023 08:00

Irmão mais novo duma prole considerável, o tio José não foi, por isso, mais apaparicado, pelo contrário, com pais já avós, a tarefa involuntária do "babysitting" cabia, quase sempre, aos mais velhos, que muitas vezes se limitavam à alimentação e à higiene.

Entre o tio José e o tio António estava o meu pai, João, mas como António casou cedo, emigrou e faleceu cedo, a relação mais próxima era indubitavelmente, com o tio José.

José adolescente imberbe deu por si a fugir para a França para se livrar ao serviço militar obrigatório e consequente chamada para o Ultramar. Ali fez toda a sua vida com duas mulheres oficiais, umas tantas companhias e três filhos, que também eram primos entre si. Confusos? Tio José, pragmático como era, casou com duas irmãs, consecutivamente, é claro.

Só conheci a segunda, a Evelyn, de ascendência polaca, mulher pequenina, loura, olhos grandes castanhos e uma paciência que de outra forma não se compatibilizaria com a personalidade alegre, despreocupada e quiçá inconsequente do tio.

As vindas dele à Madeira nos anos 80 e 90 eram muito frequentes e, quase sempre, ficava na nossa casa, era uma alegria, para mim, a vinda do tio, não só pelos presentes que encantavam, como prisões de cabelo com fitas de seda, camisolas futuristas que pareciam do avesso e a primeira Lacoste.

O tio José plantou a minha especial predileção pela fotografia, quando nos ofereceu a primeira máquina fotográfica de jeito. Não que me dedique ao hobbie, mas porque gosto de registar tudo em imagem, não era poucas as vezes que as revelações dos rolos de cheiro acre revelavam uma poia de cão em grande plano, ou até uma mosca de barriga verde, para desaprovação paterna insistente (eufemismo para ralhete).

O tio apresentava-nos um mundo novo, um mundo de aventura do qual só podíamos ouvir falar, de viagens e mergulhos, de barcos encalhados na Bretanha durante oito horas, até a maré voltar a subir e o barco navegar, velocidades duvidosas com "super cars" nas autoestradas francesas. Era todo um mundo novo.

Nunca o visitamos porque a minha mãe não considerava que tio José viesse equipado com o extra de responsabilidade necessária para tomar conta de nós, mas ele compensava nas visitas.

Por cá, levava-nos a comer "um guisado fresquinho" em São Vicente, parava o carro na estrada antiga do norte para o carro se abanar com as ondas, o que me aterrorizava e com razão. Levava-nos à praia, a pescar (a maior seca do mundo), geralmente com o carro da minha mãe, emprestado, que há pouco consegui localizar e comprar, com música aos berros, velocidade furiosa e o meu pai, ao lado, de indicador e seu vizinho enterrados no plástico do tablier a ameaçar: "_José, José, tu vai mais devagar, José, olha que eu saio mesmo aqui, José!!!", enquanto José a se rir, subia Santa Rita a 120 km/h, velocidade que João, ele mesmo, atingia tantas vezes, prova de que o "faz como eu digo e não como eu faço" é bem real.

Tio José partiu há alguns meses, ligava de vez em quando para falar comigo, mas demorava tanto nas conversas, era tão "redondo" que várias vezes pedi para informarem que não estava, quando estava… só o meu primo Miguel lhe dava a atenção demorada que os demais não conseguiam despender. Partiu o tio José e, agora, nem demoradas, nem breves, acabaram as chamadas, os guisados fresquinhos, o sorriso maroto, os beijinhos na face do irmão que tanto o embaraçavam. Morreu tio José, o meu tio favorito e com ele, um admirável mundo novo.

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