Três ou cinco segundos antes das 13:00 do dia 10 de abril de 2006, uma segunda-feira, Dona Beleza Móvel regressou abruptamente de um distanciamento profundo e começou a balançar-se na cadeira. A luz do mundo inundou-lhe o olhar, como se o olhar fosse a própria luz do mundo, e tudo à sua volta adquiriu forma: os telhados de zinco enferrujado, os coqueiros ao vento, a Via do Mar polvilhada de areia branca e o mar ao fundo.
Todos os dias – dizia eu numa crónica antiga – Dona Beleza Móvel sentava-se numa cadeira de baloiço, na varanda que contornava o primeiro piso do velho casarão onde vivia sozinha. Ficava ali manhãs inteiras, tardes completas, noites sem fim e pensava na beleza inquietante do mundo – dizia eu nessa crónica antiga – e, pensando na beleza inquietante do mundo, planeava viagens extraordinárias que jamais faria, mas sobretudo afundava-se em longos distanciamentos, ou seja, entrava num estado de espírito em que tudo se confundia dentro de si e tudo em si era abismo, vertigem, deserto.
Naquela altura, quando a conheci, ela tinha 45 anos e era ainda uma mulher sublime, linda, eu diria mesmo linda de morrer, se é que me faço entender, mas sentia-se um horror, feia e defeituosa. Posso afirmar – tal como afirmei naquela crónica antiga – que Dona Beleza Móvel era uma mulher madura que não sabia ser bonita e, por isso, detestava os homens, detestava-os da ponta do olhar ao fundo do toque, mesmo que o toque e o olhar fossem por mero acaso, sem querer, sem qualquer intenção, como aconteceu sempre comigo e ela também me detestava.
Era muito bonita e muito rica também, embora vivesse num solar em ruínas – isso pude constatar – e diziam que era virgem e seca em amores – já isto não o posso provar. Sei, no entanto, que em 10 de abril de 2006, uma segunda-feira, Dona Beleza Móvel regressou bruscamente de um distanciamento profundo e começou a baloiçar na cadeira. Eu estava lá e senti tudo. A luz do dia inundou-lhe o olhar, como se o olhar fosse a luz do dia, e tudo à sua volta adquiriu forma: os telhados de zinco velho, as esguias árvores de Deus ao vento, a estrada principal salpicada de areia branca e o mar ao fundo.
No sino da igreja, atrás do casarão, soou uma pancada solitária, que ecoou ou sobre a vila e desceu em direção ao oceano. Dona Beleza Móvel acompanhou o som da hora rua abaixo e foi então que avistou Palavra, o cão rafeiro preto e branco que tinha chegado à ilha há coisa de três semanas com o homem – era assim que todos se referiam ao dono do cão – o homem – e eu também – e o cão estava com a pata traseira direita levantada a urinar contra o tronco de um coqueiro.
Depois, viu aparecer o homem, um pouco mais atrás. Ele assobiou e fez gestos, chamando o cão. Palavra correu, deu meia dúzia de saltos à sua volta, muito feliz, e desapareceu num beco, mas logo regressou à rua principal, como se se tivesse esquecido de alguma coisa, sabe-se lá o quê, um osso, um pau, e ficou estático a olhar na direção da varanda.
Dona Beleza Móvel estremeceu, deveras impressionada com a atitude do cão, mas logo a seguir despistou-se com a gritaria do papagaio Pita, o animal de estimação do padre, que provinha da casa paroquial, atrás do solar.
– Maldita ave! – Murmurou e, ao mesmo tempo, foi tomada por um ligeiro distanciamento e esse distanciamento, ainda que ligeiro, levou-a inteirinha para a parte de trás da consciência e da realidade. Quando voltou a si, três ou cinco segundos depois, já o cão e o homem tinham desaparecido. No lugar deles, avistou o doutor Dedo Mulloia, que saía de casa para ir almoçar. O doutor colocou o panamá na cabeça e atravessou a rua para o lado da sombra e no momento em que saiu do sol e entrou na sombra, exatamente nesse momento, um pensamento brutal atingiu Dona Beleza Móvel em cheio e fê-la tremer:
– E se eu me apaixonasse pelo homem? – Sussurrou, perdida na solidão da varanda.
Um calafrio arrebitou-lhe os mamilos e um calor inexplicável percorreu-lhe o baixo-ventre, encheu-a de desejo e esperança e ela foi tomada por uma inesperada ideia de salvação, de corpos nus, de línguas húmidas, de suor, de frescura marmórea e gemidos de prazer. Nisto, abriu os olhos e ficou sem saber se estava a pensar ou a sonhar. E, de repente, tudo se desfez.