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Artigo de Opinião

13/10/2025 06:27

Lisboa, 23 de maio de 1536. O céu pesa sobre a cidade como um presságio. Os sinos dobram, mas não anunciam festa. O som espalha-se pelas colinas, como que a avisar de algo irreversível. Chega de Roma um decreto envolto em lacre, cheiro a cera e silêncio. Nas mãos do rei D. João III, o selo do Papa Paulo III legitima o nascimento do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal. Nesse dia, o medo sentou-se à mesa do poder. E Portugal, sem saber, começou a apagar-se.

Até esse dia, Portugal era uma anomalia luminosa na penumbra europeia. Um reino que ousava. Misturava fés, saberes e povos. Judeus, muçulmanos e cristãos viviam, com atritos, sim, mas também com convivência e respeito. Os judeus sefarditas eram fundamentais na medicina, finanças e diplomacia. Os cristãos-novos sustentavam parte da economia urbana. Em Lisboa, Santarém, Évora, o burburinho das ruas fazia-se de línguas diferentes, de manuscritos e mapas, de debates e descobertas. O saber era virtude. A diferença, uma riqueza. O futuro, um mar aberto.

Foi esse Portugal que concebeu Pedro Nunes, Garcia de Orta, Abraão Zacuto. Um país que navegava com astrolábios e com ideias, com caravelas e com visões. Tínhamos fama lá fora: de comerciantes ousados, cientistas brilhantes, mestres de navegação. As universidades floresciam, os livros circulavam, o pensamento não pedia licença. Portugal era um farol atlântico.

Essa energia, esse fervilhar de inteligências e de experiências, permitiu a Portugal tornar-se uma das primeiras potências globais. Dominámos rotas comerciais, fundámos cidades, impusemos línguas, culturas e sistemas num mundo vasto e inexplorado. Tudo isto a partir de uma pequena faixa de terra na extremidade da Europa. Portugal ousou o que nenhum outro ousara: tornar-se universal.

E depois veio o medo.

A Inquisição não chegou com fogos de artifício. Chegou como veneno silencioso. Instalou-se nos lares, nas praças, nos becos e no pensamento. A denúncia tornou-se virtude. O saber, suspeito. A diversidade, crime. Começámos a vigiar-nos. A desconfiar dos vizinhos. A calar os livros. A fugir das ideias.

Milhares partiram. Intelectuais, médicos, banqueiros, mercadores, refugiaram-se em Amesterdão, Londres, Ferrara. Cidades que floresceram com o talento que Portugal rejeitou. As universidades murcharam. A ciência estagnou. A crítica morreu. Ficámos mais pobres. Mais obedientes. Mais sós.

Durante a sua vigência, a Inquisição instituiu uma cultura de vigilância e terror. Prendeu, torturou, queimou e censurou. Publicou os índices de livros proibidos. Impediu a circulação do conhecimento. O medo de ser denunciado moldou comportamentos e mentalidades. E quando finalmente foi formalmente extinta, já era tarde. O estrago estava feito. As estruturas mentais e sociais já tinham sido moldadas pela repressão.

E o mais grave: moldou-se um povo. A cultura do medo atravessou séculos. A obsessão pela “pureza de sangue” germinou em racismo estrutural, em desconfiança crónica, em passividade social. Hoje, 200 anos após o fim formal da Inquisição, ainda trememos perante o pensamento livre. Ainda recuamos diante da originalidade. Ainda receamos o brilho alheio.

E se D. João III tivesse dito não? E se Portugal tivesse resistido?

Poderíamos ter tido um Renascimento pleno, uma ciência pujante, uma burguesia ativa. Teríamos sido mais Inglaterra, mais Países Baixos, menos periferia resignada. Teríamos criado mais do que conquistado, iluminado mais do que obedecido. Talvez resistíssemos melhor à União Ibérica. Talvez não tivéssemos passado séculos a tentar recuperar um atraso que começámos por aceitar. Talvez fôssemos hoje o país que ousámos ser.

Mas não fomos. E a ferida permanece.

A Inquisição não foi apenas um erro histórico. Foi a escolha de um modelo de nação. Não é à toa que os portugueses se definem pelo fado e a fatalidade — essa aceitação resignada do infortúnio, como se tudo estivesse escrito e pouco houvesse a fazer. Essa visão do mundo não nasceu connosco: foi cultivada durante séculos de repressão, censura e medo. E esse modelo ainda molda o nosso presente. Pensamos pequeno, desconfiamos do vizinho, temos medo de errar. E pior, achamos isso normal.

Portugal precisa de uma nova desinfeção. Não de corpos, mas de ideias. Precisamos de nos livrar do Santo Ofício invisível que ainda habita dentro de nós. Não para reescrever o passado. Mas para impedir que ele continue a escrever-nos a nós.

É por isso que cada eleição importa. Porque cada voto pode ser um gesto de liberdade ou um reflexo de medo. Podemos decidir como rebanho, empurrados pelo ruído, pela raiva ou pelo ressentimento, ou podemos decidir como cidadãos, com pensamento crítico e consciência do país que queremos ser.

Em 1536 escolhemos a obediência e o medo, e pagámos caro por isso. Hoje, ao votar, podemos escolher diferente. Podemos escolher pensar. E tudo começa, outra vez, no mesmo lugar: no instante em que decidimos quem somos, não como nos dizem para ser, mas como escolhemos ser.

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