Vivemos tempos estranhos. A História sempre teve convulsões, guerras e líderes erráticos, mas a sensação contemporânea é a de que o caos deixou de ser exceção para se tornar regra. Basta abrir um jornal ou, mais frequentemente, o feed de uma rede social, para percebermos que a realidade se tornou um imenso palco onde todos gritam, todos acusam, e poucos se entendem.
Na frente de guerra, temos a Ucrânia e a Rússia, presas numa tragédia que já parece uma guerra de desgaste do século XX mas com drones e propaganda digital do século XXI. É um conflito que não se limita às trincheiras: alastra-se às timelines, onde exércitos de bots e influenciadores disputam narrativas como se fossem batalhas decisivas.
No Médio Oriente, Palestina e Israel repetem ciclos de violência, tragédias e discursos estéreis que, década após década, vão produzindo mais cadáveres do que pontes de diálogo. O sofrimento humano torna-se estatística, e o sangue derramado perde-se entre hashtags e comunicados que se anulam mutuamente.
No campo político global, a clivagem também é evidente: de um lado, líderes como Trump ou Bolsonaro, que surfam o descontentamento popular com discursos inflamados e uma estética de ‘anti-sistema’ que rapidamente se torna novo sistema. São, no fundo, duas bolachas do mesmo pacote: ambos reagiram à derrota eleitoral como se fosse fraude cósmica, fomentando ataques aos próprios símbolos do país, incentivando invasões e ensaios de golpes de Estado, com um acabando absolvido, o outro condenado — mas ambos alimentando a mesma lógica de que a democracia só é válida quando lhes serve. Do outro lado, uma esquerda que, na prática, pela sua inabilidade na condução dos destinos onde governou, fez nascer estas figuras. E, em vez de reconhecer essa falência, prefere cavalgar crises, apontar dedos e afogar-se em purismos ideológicos que mais parecem caricaturas de si próprias. Pior: refugia-se numa moralidade de vitrine, incapaz de reconhecer as suas falhas, e acaba por ser tão radical no cancelamento e na intolerância como aqueles que critica.
Entre estas polarizações, surgem choques que deixam cicatrizes. O assassinato de Charlie Kirk, figura da direita americana, e o de Iryna Zarustka, uma jovem morta barbaramente no metro nos Estados Unidos por um homem com longo cadastro e perturbações mentais, expõem duas faces do mesmo mal-estar contemporâneo. No primeiro caso, a violência política que elimina quem pensa diferente; no segundo, a falência de sistemas judiciais, prisionais e de apoio social que permitem que uma vida seja ceifada sem razão aparente. Juntos, são símbolos de um tempo em que já não basta cancelar no digital: cancela-se na vida real, pela ideologia ou pelo colapso das instituições.
E é justamente o digital que se tornou o novo campo de batalha. As redes sociais, que nasceram com a promessa de aproximar pessoas, transformaram-se em instrumentos de manipulação, em megafones de radicalismos e em tribunais permanentes. Mais grave: estão a invadir os próprios mecanismos democráticos. O caso insólito do presidente do Nepal, eleito em parte graças a votações feitas via Discord, ilustra a era em que memes e cliques substituem debates sérios e programas políticos.
Tudo isto contribui para a sensação de que vivemos num mundo a preto e branco. A lógica do “connosco ou contra nós” corrói qualquer espaço de nuance. Não há paciência para a moderação, nem espaço para a dúvida. O algoritmo alimenta a indignação e a raiva porque são elas que vendem, que geram cliques, que alimentam a máquina. O centro político e cultural esfarela-se entre extremismos que berram mais alto e captam mais atenção.
A metáfora é simples: o queijo da sandes está a desaparecer. Ficamos apenas com duas metades de pão, secas e ressequidas, discutindo entre si qual é a melhor. Uma diz que sem ela não há sandes. A outra responde que é a verdadeira base do lanche. Ambas esquecem que, sem queijo, sem o recheio que dá sentido, a sandes deixa de ser sandes.
Esse queijo é o meio-termo, os moderados, os que ainda acreditam que a política é feita de compromisso, que a sociedade é construída com cedências mútuas e que o diálogo não é sinal de fraqueza, mas de maturidade. São esses que estão a ser esmagados no ruído ensurdecedor da polarização.
A tragédia contemporânea é esta: não só estamos a perder o “queijo” que unia os extremos, como começamos a achar que ele nem faz falta. É a vitória do vazio, da discussão estéril, da guerra permanente de narrativas. Um mundo sem meio é um mundo sem sabor.
E, tal como uma sandes sem queijo, dificilmente nos alimentará.