MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

11/10/2025 08:00

Outubro chega sempre com cheiro a terra molhada e uma nostalgia difícil de explicar. Os dias encurtam, a luz apaga-se mais cedo e a cozinha torna-se o coração da casa. É aqui que se acende o lume, que se cortam as batatas, que se coze a abóbora para a sopa de trigo, receita antiga que carrega o peso de tantas gerações. O outono, para mim, sabe a isto: ao borbulhar lento da panela, às colheres de pau que mexem memórias, ao vapor que embacia os vidros enquanto um livro permanece aberto na mesa.

Na Madeira, o outono tem um rosto particular. Não traz a neve de outras cidades, mas o cheiro intenso das castanhas assadas que começa a invadir as ruas; e dá-nos o ouro das folhas que se acumulam nos caminhos das serras, as primeiras noites frescas que pedem mantas e chá de macela. A ilha veste-se de tons quentes, como se quisesse compensar a ausência do frio rigoroso com o aconchego da abundância.

Há histórias que parecem escritas para esta estação. Penso em “Como Água para Chocolate”, de Laura Esquivel, o meu livro favorito. As lágrimas, ao cortar cebolas, transformavam-se em feitiço culinário. Sorrio, porque também eu acredito que os sentimentos passam para a comida. Se estou triste, a sopa fica baça; se estou feliz, o caldo brilha. Hoje, ao mexer a panela, lembro-me de Tita e percebo como os alimentos podem ser linguagem secreta, tão forte quanto a literatura.

Tu chegas da rua, André, com o frio da noite colado ao casaco e, sem dizer nada, provas a sopa com a ponta da colher. Eu aproveito o gesto e lembro-me de “Bolo Preto”, de Charmaine Wilkerson. Ali, a comida desempenha um papel simbólico profundo, funcionando como um elo entre passado e presente, identidade e memória. A nossa sopa é singela, mas tem a mesma promessa: é dádiva. É o que se oferece quando se quer aquecer alguém por dentro.

Enquanto encho as tigelas, recordo Saramago. Em “A Jangada de Pedra”, descreve refeições partilhadas como quem fala de rituais. A mesa, para ele, é lugar de comunidade. Aqui, nesta ilha, sinto isso em cada bolo do caco com manteiga de alho servido a dois, em cada poncha bebida de copo em copo nas noites frias. A comida é sempre encontro, sempre ponte. Talvez seja por isso que a gastronomia, tal como a literatura, nos amarra à vida. São rituais de amor.

Serves-me a sopa, eu sopro devagar. Lembro-me de uma passagem de “A Sombra do Vento”, de Zafón, outro favorito, em que o pão quente numa manhã fria era tanto alimento como memória. Também esta sopa que partilhamos agora não é apenas caldo: é infância, é outono, é promessa de futuro. E penso que o outono é uma espécie de ensaio sobre a impermanência. Ensina-nos que as folhas caem, mas voltam a nascer; que as tardes se encurtam, mas regressam longos dias de verão. E nós, aqui, aprendemos a aceitar essa mudança sentados à mesa, com uma tigela de sopa diante de nós, um livro aberto ao lado e a certeza de que não precisamos de finais para escrever boas histórias. Talvez seja esse o romance inacabado de outubro, o que escrevemos todos os dias, com comida e palavras, na cumplicidade de quem sabe que a literatura também se cozinha.

Outubro, afinal, é este lugar. A cozinha que se transforma em sala de leitura, o prato que guarda a memória dos nossos avós, a ilha que oferece sabores de terra e de mar como páginas abertas. E nós, entre livros e sopas, vamos aprendendo que o amor é feito de pequenas interrupções.

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