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Artigo de Opinião

Antropóloga / Investigadora

3/11/2025 03:30

Nos últimos tempos, Portugal tem assistido a uma crescente polémica sobre a possibilidade de proibir o uso da burca em espaços públicos. O tema, importado de outros contextos europeus, tem inflamado debates sobre liberdade, religião, direitos humanos e igualdade de género. Não obstante, esta discussão parece-me mais uma distração – até conveniente - perante os problemas estruturais que o país enfrenta.

Independentemente da minha opinião pessoal quanto ao uso da burca ou o significado para quem a usa, Portugal não é um país onde o uso da mesma seja propriamente comum. Então, por que razão dedicar tanto tempo político e mediático a um tema que praticamente não existe no nosso quotidiano?

Enquanto se discute a burca, o país continua a enfrentar desigualdades profundas. O custo de vida aumenta, os salários permanecem baixos, os jovens emigram por falta de oportunidades, e a habitação tornou-se num luxo inalcançável para grande parte das famílias. No setor da saúde, os hospitais acumulam listas de espera intermináveis; na educação, multiplicam-se os casos de falta de professores e de sucessivas greves. Estes são problemas que tocam diretamente a vida dos cidadãos e exigem soluções assertivas e concretas — não debates simbólicos sobre vestuário.

A insistência em discutir uma lei sobre a burca serve, assim, como uma cortina de fumo. É um tema que gera ruído, opiniões extremadas, cliques nas redes sociais e tempo de antena, mas que pouco contribui para melhorar a vida de quem vive em Portugal. Digo mais, não se constrói uma sociedade ou o bem-comum com tik-toques irrisórios sobre este tema.

Em parte, vejo esta proposta ligada a um debate europeu sobre imigração e integração cultural, o receio de que o aumento da imigração islâmica possa trazer práticas consideradas “incompatíveis” com a cultura portuguesa. É certo. Também vejo como uma contradição política: em nome da liberdade, propõe-se limitar a liberdade. Defende-se a emancipação das mulheres impondo-lhes o que podem ou não vestir. É um moralismo disfarçado de progressismo, que, em vez de libertar, uniformiza.

No meu ponto de vista, a verdadeira emancipação passa por garantir que cada pessoa tem liberdade de escolha de usar a burca ou não.

Além disso, legislar sobre o uso de uma peça de roupa que é usada por uma minoria quase inexistente em Portugal é, no mínimo, desproporcional. É uma tentativa de importar problemas de outros países para alimentar debates identitários que nada acrescentam à realidade portuguesa.

Em vez de discutir a burca, deveríamos estar a discutir políticas que combatam a pobreza, o desemprego e a exclusão social — problemas que, esses sim, afetam milhares de mulheres portuguesas. Devíamos falar de acesso à educação, da precariedade laboral, da desigualdade salarial, da violência doméstica, da falta de apoio às mães solteiras, da discriminação por ser mãe e trabalhadora. Estes são os verdadeiros obstáculos à liberdade feminina em Portugal.

A obsessão com símbolos externos — como a burca — distrai-nos das formas mais subtis e persistentes de desigualdade que continuam a marcar a sociedade portuguesa.

Discutir a burca pode parecer um debate moderno, mas é, na verdade, um desvio de atenção. Portugal tem problemas sérios e urgentes que exigem pensamento, coragem política e ação concreta. Focar-se na burca é desperdiçar energia num tema irrelevante, quando há tanto por resolver.

O país precisa de políticas que libertem pessoas, não de leis que fiscalizem tecidos.

Alexandra Nepomuceno escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas.

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