A fadista Anita Guerreiro, criadora de “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”, que morreu hoje, aos 89 anos, revelou-se nos anos 1950, a cantar, mas dizia dever à televisão e ao trabalho de atriz a popularidade que recuperou nos anos 2000.
Anita Guerreiro protagonizou uma carreira de cerca de 70 anos, que passou por várias séries televisivas e telenovelas, como “Olhos de Água” (2001), “Casa da Saudade” (2001), “A Outra” (2009), “Velhos Amigos” (2011) e “Esta Vida é uma Cantiga” (2019), sem jamais abandonar as raízes no fado.
Em 2004, a artista disse à Lusa que devia à televisão a popularidade que tinha junto “de uma faixa etária mais nova”, depois do interregno que fez na década de 1970, quando foi viver para os Estados Unidos.
“Foi a partir da telenovela ‘Olhos de Água’ que os mais novos começaram a tomar atenção em mim. Quando passam sempre por mim, dizem ‘olha lá vai a fadista’”, contou.
A artista disse então que, “se pudesse escolher, seria atriz”. “Prefiro ser atriz a cantar, não quero dizer que não goste de cantar e não me empenhe, mas o que mais me satisfaz mesmo é ser atriz”, disse Anita Guerreiro, que se notabilizou pela voz e por êxitos como “Festa é Festa”, “Chico Marujo de Alfama”, “Lisboa Ribeirinha” e o eterno “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”.
A fadista estreou-se em fevereiro de 1954 no Teatro Maria Vitória, no Parque Mayer, na capital, na revista “Ó Zé Aperta o Laço”.
Para a artista esta é a data que marcava o início da carreira, pois ainda menina, já cantava, como amadora, em algumas coletividades de recreio do bairro onde morava em Lisboa.
Sobre a sua estreia recordou à Lusa: “Eu ainda era menor e tive uma autorização especial do coronel Óscar de Freitas [da Inspeção-Geral dos Espetáculos] para atuar”.
Anita Guerreiro estreou-se “de uma forma retumbante”, disse à Lusa a fadista Julieta Estrela, que foi sua “afilhada de palco”, em 1955.
“Em três meses, tornou-se uma vedeta sem favor e foi um sucesso retumbante, com vários êxitos que o povo cantava na rua”, recordou Julieta Estrela, ex-presidente da Associação Portuguesa dos Amigos do Fado (APAF), sobre a estreia de Anita Guerreiro no Maria Vitória.
Anita Guerreiro é o nome artístico de Bebiana Guerreiro, nascida em 13 de novembro de 1936, em Lisboa.
A fadista deu-se a conhecer em 17 de fevereiro de 1954, no programa radiofónico de grande popularidade na época, “Comboio das Seis e Meia”. Uma vizinha candidatou-a ao concurso “Tribunal da Canção”, desse programa, de José Castelo e José Marques Vidal (1922-1985).
“Assim que me ouviram levaram-me ao [locutor] Marques Vidal e nem concorri, cantei logo”, recordou Anita Guerreiro à Lusa.
“Havia um cronómetro a contar o tempo dos aplausos recebidos por cada concorrente, e Anita dispensou-o - tal a alegria do público a ovacioná-la, com a surpresa de a artista não figurar no programa, mas enchia a sala com uma bela e sentida voz...”, lê-se na revista de espetáculos Plateia, de 01 de dezembro de 1970.
Como Bebiana Guerreiro “não era um nome de cartaz”, os produtores de “Comboio das Seis e Meia” optaram por Anita Guerreiro, nome com que se estreou em seguida na casa de fados Café Luso, em Lisboa, apresentada por Marques Vidal.
“Eu gostava de cantar, do mundo do espetáculo e o dia em que me estreei na revista ‘Ó Zé Aperta o Laço’ foi um delírio, era a realização de todos os meus sonhos”, afirmou.
Anita Guerreiro garantiu à Lusa, nessa entrevista de 2004, que nem sentiu então o peso da responsabilidade.
“Fui muito bem tratada, acarinhada, tratada como a mascote, e não estranhei, estava a fazer aquilo que gostava”, contou.
Guerreiro chegou ao teatro por intermédio de um colega da digressão que fez com o “Comboio das Seis e Meia”, sobrinho da diretora do Teatro Variedades.
O seu primeiro número foi o de “uma moça da província que vinha a Lisboa, para concorrer a um concurso de fados”.
Deu-se bem em representar e acabou por ficar, associando-se a sucessos do teatro de revista: “Tive sempre grandes êxitos no palco, graças a excelentes números, que ninguém, nem eu, voltarei a fazer”-.
A “miúda do Intendente”, como era conhecida, por ser o bairro lisboeta onde morava, alcançou o seu primeiro êxito com um fado de Francisco Radamanto, “Tia Anica”, na melodia do Fado Bizarro, de Acácio Gomes, referindo-se ao envio de tropas para o então Estado Português da Índia, mais tarde adaptado aos militares destacados para Angola e para a atual Guiné-Bissau.
“Não houve sítio em Portugal onde eu não fosse, que não houvesse, sempre, uma mãe, uma irmã ou uma mulher que me pedia para cantar a ‘Tia Anica’”, recordou.
Anita recordou ainda à Lusa as diversas digressões que fez, “muitas vezes atuando em cima de uma camioneta, com dois focos e mais nada, nem microfone, nem quaisquer condições acústicas”.
Em princípios da década de 1970, César Oliveira e Carlos Dias assinaram outro grande êxito seu: “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”, saído da revista “Peço a Palavra”, de 1969, ano político em que Marcello Caetano prometia uma “evolução na continuidade”, e musicalmente marcado por outros sucessos, designadamente “Desfolhada Portuguesa” (Ary dos Santos/Nuno Nazareth Fernandes), com que Simone de Oliveira defendeu as cores nacionais na Eurovisão, e “Casa Portuguesa” (Reinaldo Ferreira/Vasco Matos Sequeira/Artur Fonseca), por Amália Rodrigues.
O regresso de Anita Guerreiro aos palcos da revista à portuguesa, em 1982, em “Há, Mas São Verdes”, foi assinalado com “Calçadinha Portuguesa” (César de Oliveira/João Nobre).
Anita Guerreiro fez parte do elenco de 50 revistas, das quais destacou quatro realizadas no Coliseu dos Recreios, em Lisboa: “Fonte Luminosa”, “Cidade Maravilhosa”, “Mulheres de Sonho” e “Há Festa no Coliseu”.
Em 1970, recebeu o Prémio Estêvão Amarante relativo à temporada de 1969/70, pela sua atuação nas revistas “Peço a Palavra” e “Prato do Dia” e, paralelamente, uma Guitarra de Ouro, em Angola, onde residiu.
No Parque Mayer, Anita Guerreiro fundou e dirigiu a casa típica Adega da Anita, por onde passaram destacadas figuras do circuito fadista, como Manuel Fernandes (1921-1994). Mais tarde encerrou o espaço e partiu para Angola, onde se manteve durante cerca de três anos, regressando a Lisboa para fazer parte do elenco do Teatro Capitólio, numa revista.
No cinema, participou no filme, “Lisbon” (1956), de Ray Milland, onde interpretou o tema “Lisboa Antiga” (Amadeu do Vale/José Galhardo/Raul Portela).
Até 2019, pertenceu ao elenco da casa de fados “O Faia”, no Bairro Alto.
Entre as distinções que recebeu, ao longo da carreira, refira-se dois Oscares de popularidade pela comunidade portuguesa, em Newark, nos Estados Unidos, em 1987 e 1988.
O ex-presidente da Câmara de Lisboa, João Soares, entregou-lhe o Pelourinho da Cidade, distinção só entregue a Chefes de Estado, mas nas palavras do ex-autarca “Anita Guerreiro personifica a Cidade de Lisboa”.
A Câmara de Lisboa entregou-lhe também uma Caravela de Ouro, e, em 2004, as Chaves da Cidade.
A APAF distinguiu-a como ‘Sócia de Mérito’, em março de 2004.
“Ai, ai Lisboa”, “Boneca de Trapos”, “Santo António veio a Alfama”, “Sardinhada” e “O Fumo do meu Cigarro” são outros dos seus êxitos.
Anita Guerreiro morreu hoje, pouco depois da meia-noite, durante o sono, na Casa do Artista, em Lisboa, onde vivia desde 2018 e onde continuou a cantar.
“Calou-se a voz, mas fica para sempre o legado desta grande Senhora da cena artística portuguesa. Descanse em paz, querida Anita Guerreiro”, escreve a Casa do Artista na sua página oficial na rede social Facebook.