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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

24/03/2023 08:00

A certa altura, apareceu um recruta que era um estupor, sempre a desatinar, sempre a provocar confusão, um filho da mãe de primeira água, de modo que o aspirante, não o podendo dominar de maneira nenhuma, fez queixa dele ao comandante da companhia.

Um dia o tenente apareceu na parada, no meio de um treino de ordem unida, e mandou-o sair da formatura e pediu-lhe que o acompanhasse. Ao passar por mim, disse-me para ir também com eles. Subimos os três para o seu gabinete. O tenente à frente, a seguir o recruta e depois eu. Entrámos. Ele fechou a porta e pregou três socos na barriga do recruta à falsa fé, enquanto lhe dizia coisas como:

- Isto é para não te armares em esperto! Isto é para te meter na ordem! Isto é para aprenderes a respeitar a autoridade!

E a seguir disse:

- Entendido?

Cabisbaixo, dorido, o recruta respondeu:

- Sim, meu tenente.

O outro acrescentou:

- Não te quero ver mais no meu gabinete.

- Sim, meu tenente.

Depois, mandou-o sair.

Ficámos sozinhos, eu e o tenente, e ele disse-me assim:

- Só te chamei aqui para seres testemunha de que não fiz nada ao gajo, ok?

Eu não tinha qualquer alternativa, a não ser:

- Sim, meu tenente.

Este episódio, entre tantos que ocorreram naqueles 14 meses de tropa, já lá vão mais de três décadas, foi uma importante lição de vida para mim, pois ajudou-me a compreender melhor a engrenagem do poder, o seu modo de funcionamento, bem como a natureza das relações inter-humanas que justificam e solidificam a sua existência. Ou seja, aquilo mostrou-me, de maneira muito simples, a verdadeira essência do poder, o seu corpo e a sua alma como são de facto, sem disfarces, o seu cinismo, a sua hipocrisia, a sua veleidade, a sua leviandade. Aquilo mostrou-me, com toda a clareza do mundo, como o poder opera na prática, para além do desfile pomposo em parada, sem subterfúgios, sem vergonha, sem medo.

Naquela ocasião também percebi que, para o bem ou para o mal, quisesse ou não quisesse, tivesse a consciência limpa ou atormentada, eu fazia parte integrante do mecanismo, como se fosse um parafuso indispensável, mas daqueles que depois sobram e ficam sem préstimo quando se desmonta e monta outra vez a mesma estrutura. Já agora, convém dizer que é sempre a partir desta descoberta que começa o verdadeiro sofrimento do indivíduo à face da Terra e isso foi uma coisa que eu também aprendi naquela hora.

Mais ou menos um ano depois de ter terminado o serviço militar, estava a passear na cidade ao cair da noite, quando me apareceu um indivíduo pela frente de supetão, que me travou, colocando as mãos no meu peito.

- Alto lá! - Disse ele.

Era um tipo alto e forte, pelo que tive de erguer ligeiramente os olhos para o fixar. Tinha o cabelo cortado à escovinha. Os olhos eram pretos e inexpressivos. A boca também era inexpressiva. As maçãs do rosto, porém, estavam terrivelmente rosadas, como se estivessem a arder por dentro. Eu não o conhecia de lado nenhum.

O gajo disse:

- Boa noite, furriel.

Logo de seguida deu-me uma cabeçada e depois uma joelhada na barriga. Era uma vingança. Não sei porquê, não sei de quê, talvez uma maldade já esquecida da minha parte, um equívoco da parte dele, fosse o que fosse era uma vingança - a expressão mais básica e acessível do poder. E eu, perplexo e assustado, lembrei-me da cena no gabinete do tenente e confirmei ali tudo o que já sabia sobre o assunto.

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