Ela estava perdida num distanciamento, como se tivesse regressado ao dia anterior, quando o homem anunciou que iria ausentar-se por algum tempo, dizendo que não voltaria antes de sexta-feira e ela estava agora a rememorar a cena, vendo-o atravessar o restaurante do Hotel da Vila, onde se encontrava a jantar com o juiz presidente da Comarca, seu amigo de longa data, e o homem disse:
– Boa noite!
– Boa noite! – Responderam todos em uníssono, incluindo o papagaio Pita, mas todos com ar de caso, exceto o papagaio, pois na verdade andavam a engendrar um esquema para surripiar os cadernos do homem e organizar uma sessão de leitura à sua revelia.
Eram seis pessoas, para seis cadernos: o dono do hotel, o administrador do Município, o padre Inocêncio Noha (mentor do papagaio Pita, ou talvez fosse ao contrário), o juiz presidente da Comarca, o doutor Dedo Mulloia e ela, a lindíssima Dona Beleza Móvel.
O homem notou a teatralidade da saudação e isso fê-lo sorrir, um sorriso vago, sinal de quem desvenda segredos. Dirigiu-se à receção, mesmo ao lado do bar, e o seu olhar era quieto e profundo e a cara era ossuda, comprida e queimada do sol, o cabelo negro e longo e desarranjado, a barba densa e vadia e profética e todos o seguiram com os olhos. Até o papagaio Pita pôs a cabeça de lado e observou-o com o olho vítreo do lado esquerdo.
– A chave, por favor.
O dono do hotel estava arregalado. Depois, sacudiu a cabeça.
– Ah, chave do quarto! Pois claro, com certeza! – Disse e virou-se para o armário, meteu a mão na prateleira n.º 7, tirou a chave e depositou-a na palma da mão direita do homem, magra e esguia, e viu o quão nítidas e fundas eram as linhas da vida, do coração, da cabeça e do destino e ficou assombrado por isso.
– Vou estar ausente uns dias – disse o homem. – Saio amanhã bem cedo. Não voltarei antes de sexta-feira.
– Obrigado por informar – respondeu o dono do hotel. – Quer comer alguma coisa antes de subir?
– Não, obrigado.
– E beber? Bebe alguma coisa?
– Também não, obrigado.
– Bom, nesse caso, desejo-lhe boa noite e boa viagem amanhã – disse o dono do hotel e o homem virou-se para a sala e disse “Boa noite, meus senhores” e depois dirigiu o olhar para Dona Beleza Móvel e disse “Boa noite, minha senhora”, sabendo que ela já estava perdidamente apaixonada por si, e todos responderam outra vez ao mesmo tempo “Boa noite” e de novo ele percebeu a teatralidade da saudação e sorriu, ao passo que os outros seguiram-no com o olhar e viram-no rasgar a obscuridade do vão da escadaria, depois viram-no de perfil a subir os degraus, o cabelo longo a tapar o rosto, até desaparecer no silêncio do piso superior. Era o único hóspede no hotel.
Agora, 24 horas depois, estavam outra vez reunidos no restaurante, à volta da mesa grande, debaixo do candeeiro principal, cada um com um caderno – os meus cadernos –, enquanto a lua cheia percorria noite e o mar cintilava ao luar e a areia da praia e dos caminhos também cintilava ao luar e uma lividez fantasmagórica assenhorava-se da vila, entranhava-se nas coisas, nas árvores, nas raras pessoas que circulavam na praça central.
– É a sua vez – disse o administrador do Município.
Dona Beleza Móvel estava na pose do caderno de capa enramada em tons de azul e castanho e tinha-o aberto sobre o peito, o seu admirável peito, pressionado pelas delicadas mãos cor de marfim e nos seus grandes olhos azuis, perdidos em distâncias incompreensíveis, sentia-se o mar ao longe e uma leve, levíssima brisa salgada.
– É o tempo do voo das térmitas...
E todos, boquiabertos, ouviram um rumor de asa transparente na sua voz, um rumor impossível de se ouvir, e ela prosseguiu:
– Ontem, um raio matou uma criança que estava a apanhar mangas aqui perto, empoleirada na árvore. Foi a primeira tempestade da época e depois, inesperadamente, ela telefonou. Perguntou-me se as chuvas já tinham começado. Disse que no nosso país estava a nevar e fazia muito frio. Depois, disse que o seu pai tinha morrido. Disse que era por isso que me estava a telefonar.
Sobreveio um breve silêncio, um silêncio sem fim, e depois o administrador disse:
– Leia mais um pouco.