Na Madeira, se tentássemos explicar a essência desta quadra natalícia da melhor forma, seria através de uma receita – a receita da própria alma madeirense.
E este artigo é um manual de instruções, uma receita que retrata o afeto e a herança cultural, de um povo que faz de “A Festa” um dos pontos centrais da sua identidade. E quem é que não gosta de “A Festa”.
Para darmos início a esta jornada sensorial, precisamos de reunir os elementos base que compõem o nosso património natalício. Vamos à lista de ingredientes:
• 9 Missas do Parto: a base de tudo. São nove madrugadas de devoção que antecedem o Natal, onde o sagrado da Igreja se mistura com o bailinho e o licor.
• Uma Noite do Mercado (23 de dezembro): o ingrediente mais vibrante e caótico, cheio de cor, cânticos e a frescura dos produtos da terra;
• Uma Noite de Natal (24 de dezembro): quem é camacheiro como eu, valoriza uma noite cheia de tradição, a missa do galo e os cantares dos pastores;
• As Lapinhas e Presépios de Escadinha: a nossa fé montada em musgo e adornada com as frutas da época;
• A Carne de Vinha d’Alhos: o aroma que define a casa madeirense, marinada em vinho branco, alho e segurelha;
• Licores Caseiros: o “combustível” para a hospitalidade, servido em cálices pequenos.
Tendo reunido todos os ingredientes da nossa tradição, é tempo de arregaçar as mangas e avançar para a “Preparação”, que nos mostra o modo como estas heranças transformam o viver do nosso Natal madeirense.
A preparação desta receita começa com o despertar da ilha, ainda antes de o sol nascer. O primeiro passo é o convívio. A partir de hoje, 15 de dezembro, misturamos a fé com a celebração popular através das Missas do Parto. Entre o conforto espiritual e o calor humano, os ingredientes começam a ligar-se. Ao som dos “bailinhos”, o frio da madrugada é combatido com o aroma da Carne de Vinha d’Alhos e o conforto dos Licores Caseiros.
O segundo passo é a decoração da casa, onde damos forma às Lapinhas e Presépios em família para honrar o nascimento do menino. O musgo serve de base para os frutos da terra — as laranjas e tangerinas que perfumam a sala e a casa. A receita ganha cor e o aroma oficial do Natal.
De seguida, levamos a mistura ao ponto de ebulição na Noite do Mercado. No dia 23, a preparação torna-se coletiva e sai das casas para as ruas do Funchal. Compra-se o que falta para a ceia, mas, acima de tudo, celebra-se a união. O modo de viver o Mercado é através do canto: milhares de vozes unem-se num coro improvisado, celebrando a alegria de estarmos vivos e juntos. É o ingrediente que traz a energia necessária para o clímax de “A Festa”.
O passo final e mais solene ocorre na Noite de Natal. Como camacheira, o modo de a viver é através do respeito pelas raízes e pela fé, através do convívio, da Missa do Galo e dos cantares dos pastores que trazem uma sonoridade rústica e autêntica que nos liga aos nossos antepassados. E nada como uma pitada de poncha e canja de galinha na madrugada de 24 para 25, para um toque especial e a rigor.
Claro que para servir esta “receita”, o segredo está na hospitalidade do nosso povo. Durante toda a quadra, as portas das casas abrem-se para as visitas. O convívio, é sem dúvida a chave de ouro que nos caracteriza. O Natal na Madeira não é um prato que se come sozinho, é uma receita infinita onde cada tradição serve para alimentar o espírito de uma comunidade rica em cultura. Um dos sabores mais autênticos, desta quadra, em Portugal.
Eu gosto de “A Festa”. Por aí, “o menino Jesus já mija?”
Carina Teixeira escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas.