Esta tempestade fez-me lembrar as tempestades sem nome na Alta Zambézia, onde vivi entre 2008 e 2013, sendo que nos últimos dois anos da estada morei numa cubata com telhado de zinco. Tantas vezes, ao acordar naquele fim de mundo – já agora, eu diria que o fim do mundo é igual o seu princípio, sempre brutal e encantador –, o meu primeiro pensamento foi: O que fazer com esta chuva? Aonde ir?
A torrente de água vinda do céu era tanta e tão intensa que nem sequer no alpendre conseguia pôr os pés. Além do mais, naqueles dois últimos anos eu não tinha nada para fazer. Vivia como um vagabundo e então ficava dentro da cabana. Lia muito e muito escrevia.
Num curto espaço de tempo, em 2013, por exemplo, li enquanto chovia sem parar “Extinção”, de Thomas Bernard, “Coração, Cabeça e Estômago”, de Camilo Castelo Branco, “A Correspondência de Fradique Mendes”, de Eça de Queiroz, “As Grandes Viagens Portuguesas – 1.ª Série”, com prefácio, seleção e notas de Branquinho da Fonseca e “A Consciência de Zeno”, de Italo Svevo.
Por outro lado, escrevia coisas à toa em cadernos escolares, histórias sem sentido, sentimentos, impressões, notas sobre o dia e alma, movido por uma antiga convicção, que ainda hoje me assiste (às vezes, de forma forte e arrebatadora, como uma fé religiosa; outras vezes, fraca e oca como a falsidade de um eco), de que só a escrita me poderá salvar e no meio da chuva infinda surgiam personagens do nada, como Solo Txarepo e eu punha-me a inventar que Solo Txarepo tinha sonhado que a mãe o levava pela mão, em criança, a caminho da escola.
Estavam ambos felizes e o sol enchia os seus corpos de luz e brilho, mas, de repente, Solo Txarepo apercebeu-se de que estava sozinho na estrada. Olhou para trás. A mãe acenava-lhe ao longe e ao acenar desfazia-se em cinza. A felicidade transformou-se em angústia e ele correu, correu, correu, mas nunca saía do mesmo sítio. Correu, correu, correu e pensou que já estava a correr há mais de uma hora, quando notou que algo lhe puxava as calças. Olhou para baixo e viu um cão e agachou-se para lhe fazer uma festa e o cão disse: “Está escrito que deves ter cuidado ao sair hoje da cama. Não te esqueças que mudaste a posição dos móveis. Agora, vai!”
Solo Txarepo acordou sobressaltado, saltou da cama, ensonado e baralhado, deu dois passos em frente e marrou com a cabeça na parede, deu dois passos para trás e caiu sentado no chão, passou a mão pela testa e finalmente acordou com os dedos ensanguentados. Ouviu um cão ladrar lá fora. Trôpego, ainda zonzo, foi à janela e, de facto, um cão passava na rua.
A chuva não parava de cair e era uma chuva fortíssima, absolutamente torrencial. O seu fragor sobre o telhado de zinco oscilava entre o delicioso e o aterrador, ou seja, inclinava-se sempre para o lado em que se encontrava o meu espírito. Se eu estivesse ansioso, assustado, inquieto ou preocupado, então o estrondo da chuva na cobertura de zinco tornava-me ainda mais preocupado, inquieto, assustado, ansioso. Por outro lado, se me sentisse sossegado, ou feliz, ou leve como uma pena, então o rumor da chuva fazia-me sentir ainda mais leve, feliz, sossegado.
Tenho uma nota escrita num caderno a dizer que me encontrava enfiado dentro da palhota desde a tarde do dia anterior e eram já 11:47, mas estava tão escuro como se o dia estivesse prestes a findar e a noite a surgir outra vez. E acrescentei: Este é o tipo de viagens que faço à chuva.
Por falar em viagens, devo dizer que não conheço muito mundo, embora já tenha dado uma volta completa ao planeta. Literalmente. Fui por um lado e vim por outro, em apenas dezoito dias (já ninguém precisa de oitenta). Essa, contudo, não foi a viagem que mais me marcou. Acho que já passei aí por uns trinta e cinco países nos cinco continentes e já descobri o lugar maravilhoso onde poderia viver para sempre (mas não digo o nome – é um segredo). Porém, ainda assim, parece-me pouco, muito pouco, e, às vezes, dou comigo a pensar que esta sensação de pouco mundo decorre do facto de conhecer mal a minha própria terra, onde até as tempestades têm nome...