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Artigo de Opinião

21/06/2025 08:00

Nunca acabei “Crime e Castigo”, de Dostoiévski. Nem “Guerra e Paz”, de Tolstói. Confesso sem remorso: abandonei-os. Não por serem maus — antes pelo contrário. Talvez bons demais, densos demais, exigentes demais para os dias em que tentei enfrentá-los. Tenho uma prateleira bem visível só para esses livros: os que começaram a ser e ficaram por metade, ou por um terço, ou às vezes por um prólogo já promissor. São os meus quase-amores literários.

Acho estranho que ainda se fale em “desistir” de um livro como quem desiste do ginásio ou de um curso de línguas. Como se a leitura fosse uma prova de resistência e não um encontro. Há livros que agarram logo, que se entranham em nós, que parecem encaixar naquele exato momento da nossa vida. Outros precisam de tempo, de silêncio, de maturidade ou, até, de um desgosto qualquer para fazer sentido. Ler não é só virar páginas; é estar pronto para aquilo que o livro nos pede. É, no fundo, reconhecer que um livro exige algo de nós — e nem sempre temos o que dar.

Deixei “O Som e a Fúria” nas primeiras páginas, por altura dos vinte anos. Achei-o aborrecido. Voltei a ele aos trinta e não fui além do início. Provavelmente ainda me falta qualquer coisa. Madurez, talvez. Ou caos interior. Faulkner espera, eu sei. Não há autor ou autora que não saiba esperar. Somos feitos dessa resiliente característica da esperança. E, talvez por isso, os livros não lidos não nos pesem: permanecem ali, como portas entreabertas, à espera do momento certo para serem atravessadas.

E depois há os livros que me deixaram: sim, porque também acontece. Comecei entusiasmada, quinze páginas por dia, e a certa altura o livro afasta-se. Perde o pulso. A leitura já não é leitura, é correr os olhos pelas páginas, porém a cabeça distante, noutro sítio. E, por fim, fico a olhar para o livro como quem diz: “O problema não és tu, sou eu.” É quase um fim de relação. E, como em algumas relações, guardamos o número, não vá a vontade voltar. Há livros que deixamos na página 173 como quem deixa uma chávena de café a arrefecer. A intenção estava lá. Faltou o tempo, ou o calor.

Calvino dizia que os clássicos são os livros que nunca terminam de dizer aquilo que tinham para dizer. Eu prefiro pensar que são os livros que resistem ao nosso abandono. Estão ali, nas estantes ou na memória, a lembrar-nos que o tempo ainda pode mudar tudo. São insistentes sem serem impositivos, como uma carta antiga ainda por ler.

Também há modas. Toda a gente parece que anda a ler Colleen Hoover. Eu tentei, juro. Mas perdi-me naqueles relacionamentos complicados e nunca mais voltei. É possível que o entusiasmo alheio me tenha cansado antes de começar. Acontece com livros. E com pessoas. E não há como forçar uma afinidade que não nasceu.

Não há culpa em largar um livro. A leitura, quando é verdadeira, é voluntária e não um ato de penitência. Acho difícil acreditar em quem diz que lê tudo o que começa. Eu prefiro ler cem páginas e parar, do que arrastar quinhentas em nome de um suposto dever literário. Porque a leitura só vale a pena se nos transforma ou, pelo menos, se nos toca de algum modo, mesmo que por um breve instante.

Um dia talvez volte a Proust. Ou não. Talvez encontre uma autora obscura num alfarrabista e não consiga pousá-la até à última linha. A beleza da leitura está nesse acaso: não saber ao certo que livro vai mudar alguma coisa em nós — nem quando. A leitura é, acima de tudo, uma espera disfarçada de escolha.

Até lá, sigo em paz com os meus inacabados. Eles não são fracassos. São promessas. E uma promessa, como um bom livro, pode esperar. Esperam por mim como eu, secretamente, continuo a esperar por eles.

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