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Artigo de Opinião

Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira

18/12/2025 08:00

Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais, não há despedidas formais, não há rituais que nos amparem, mas há ausência. Uma ausência que habita dentro de uma presença. A pessoa está à nossa frente, respira, sorri, caminha, mas já não é inteiramente quem conhecíamos.

A demência chega devagar, como uma névoa que se instala sem pedir licença. Primeiro turva os detalhes mais pequenos, um nome, uma data, uma história contada mil vezes, e depois avança, silenciosa, levando com ela pedaços de identidade. Não leva o corpo, mas apaga as linhas que desenhavam a essência da pessoa.

É um luto silencioso. Um luto sem flores nem palavras, feito de pequenos pedaços que se vão perdendo dia após dia. Primeiro é um nome que se esquece, depois uma história, depois um gesto, um olhar cúmplice... até que, de repente, damos por nós a conversar com alguém que tem o rosto familiar, mas já não guarda as memórias que nos uniam. E nesse momento, percebemos: estamos a viver um luto antecipado.

A dor deste luto não tem espaço social. As pessoas dizem “ele ainda está cá”, “ela ainda vive”, como se isso anulasse a perda. Mas quem vive isto por dentro sabe; sabe que estamos a despedir-nos aos poucos, num processo longo e cruel, onde cada esquecimento é uma pequena morte, onde cada olhar vazio é uma ferida nova.

A demência não apenas altera rotinas; altera relações. Muda a forma como amamos, como comunicamos, como existimos ao lado de quem se está a perder. Amamos uma pessoa que já não nos reconhece. Sentamo-nos ao lado de alguém que já não lembra quem somos, e ainda assim continuamos a cuidar, a abraçar, a falar, a lembrar por dois. Choramos em silêncio o que já foi, enquanto tentamos encontrar beleza no que ainda resta.

É um luto que nos parte em dois: uma parte quer agarrar-se ao passado, implorar ao tempo que pare; a outra aprende a amar de uma nova forma, sem respostas, sem certezas, apenas com presença.

Este luto em vida ensina-nos a amar sem garantias. Ensina-nos que a essência do amor verdadeiro não está no reconhecimento, mas na entrega. Mesmo quando a identidade se dissolve, mesmo quando as palavras desaparecem, mesmo quando os olhos deixam de nos encontrar, nós ficamos. Não por esperança de recuperação, mas por fidelidade à história que partilhámos e à dignidade de quem permanece, mesmo que de outra forma.

Porque, no fundo, este luto é a prova mais dura e mais pura de amor: chorar alguém que ainda vive... e continuar a amar.

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Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
18/12/2025 08:00

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