Arrumo os passos no silêncio destas manhãs de dezembro até ao lugar da memória. Mora aí grande parte da substância da festa: no tempo que atravessa tudo para dar significado a cada gesto, a cada luz, a cada presente, nas pessoas que já não estão, na alegria inocente das coisas pequenas.
Está vazia a minha rua. É uma rua de casas caladas, que ainda dormem a estas horas ou, então, esvaziadas da vida que um dia tiveram, porque as casas são assim: têm alma. Ninguém, para além de mim, sai para a Missa do parto; não há búzios, nem campainhas, nem cantorias roucas a chamar para a igreja. Só a lua. O silêncio. E eu.
Com a radio do carro desligada, vou apreciando o mistério das sombras que as primeiras luzes vão desenhando e imaginando o movimento das casas que acordam, estremunhadas, ao som do despertador.
A cidade é outra a esta hora da manhã. Não sei se é do vidro ou dos meus olhos, mas há um manto que se estende em mim. Talvez a nostalgia do que já não é. Talvez a saudade de quem já não está. Talvez a falta da inocência que a vida deixa (sempre) cair.
Confesso que gosto deste caminho em que a solidão se povoa de tantas coisas, de sonhos realizados e por realizar, de desertos e de miragens, de ontens que me moldaram a vida. Gosto muito dos corpos frescos das manhãs e desta coisa de sabermos que temos um dia inteiro pela frente.
E chego à Igreja. Já há muita gente que, como eu, enfrentou o caminho e o frio das madrugadas. Trazem, certamente, a devoção dos antigos e a vontade da festa no adro, a seguir à missa. O silêncio é outro, agora. Tem corpo. Chama-se
- Virgem do Parto, ó Maria...
e é um silêncio trabalhado pelo milagre. Pelo tempo. Pela memória. Por Deus.