MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

16/12/2022 08:00

Sentou-se ao balcão e bebeu o primeiro de três uísques, todos servidos pelo empregado novo, um rapaz atarracado que parecia ser praticante de culturismo. Antes estava lá uma moça magrinha e triste, mal falava, mal sorria, e tinha um jeito de andar que lhe metia pena, embora não soubesse explicar porquê.

O dono do bar não gostava dela.

- Quando o contrato acabar, vou despachar esta gaja - disse-lhe um dia.

O dono do bar era seu amigo há muitos anos e falou em sussurro, como se fosse um segredo, com a mão a servir de pala no canto da boca e a boca bem encostada na orelha, não fossem as palavras fugir e cair nos ouvidos do Diabo.

Ele ficou ainda com mais pena da rapariga, coitada, e estava agora a pensar nela. Tinha saudades e lembrava-se do dia em que decidiu salvá-la, embora não soubesse de quê. Ia salvá-la, pronto. Ou seja, ia aconselhar a moça a apresentar a demissão antes do termo do contrato, só para o porco do patrão não ter o prazer de a despedir. Era um disparate jurídico, uma perda gratuita de direitos, mas também uma atitude carregada de autodeterminação e vitória.

O bar fechava às 23 horas e ele esperou na rua que ela saísse e depois foi atrás, sentindo-se esmagado pelos passos da rapariga no vazio da noite. Tocou-lhe no ombro e então percebeu que parte da sua pena ocultava um tremendo desejo sexual. Ela virou-se sem qualquer surpresa.

- Vem tomar um café comigo - disse ele.

- Não posso. Vou buscar o meu filho.

- Eu levo-te no meu carro. Onde é?

Era do outro lado da cidade, ele não sabia o caminho.

Por aqui, por ali, dizia ela no lugar do morto, à esquerda, à direita. De repente estava feliz, como se fosse outra pessoa, e narrava a sua vida de fio a pavio com desembaraço e sem pudor, do nascimento ao presente, o maldito presente que a traz abandonada, desprezada, divorciada, com um filho pequeno nos braços, luz da minha alma, dizia ela, mas que fica em casa de uma senhora, a quem entrega um terço do ordenado para cuidar dele até sair do trabalho e o trabalho é sempre em bares que fecham às tantas.

- É duro - disse ele.

- É a vida - respondeu ela.

Trocaram um olhar intenso no escuro da cabine e a seguir foram tomados pelo silêncio, até que ela sublinhou:

- É a vida dos pobres.

E desatou a rir, como se tivesse dito uma piada.

- Conte-me coisas de si - pediu.

Ele disse-lhe que a sua vida era simples e sem sabor, exceto o das bebidas que ingeria no bar, disse-lhe que vivia sozinho e passava os dias a saltar de casa para o escritório, do escritório para o bar, do bar para casa, disse-lhe que gostava de escrever para libertar as mágoas e que tinha muita dificuldade em dar passos para além do pensamento, disse-lhe que tudo em si eram histórias roubadas, disse-lhe também que estava farto de tudo e em breve, talvez amanhã ou daqui a dez anos, ia partir numa viagem até ao fim do mundo, provavelmente para nunca mais regressar.

- Era bom que ficasse aqui - disse a rapariga de rompante.

- Ah, sim?! Porquê?

- Porque você é boa pessoa e fazem cá falta boas pessoas.

Ele ficou alarmado e deitou por terra o plano para salvá-la. Era uma intriga e as boas pessoas não fazem intrigas, mas ficou a pensar que o mal do mundo decorre da inação das boas pessoas. A culpa é delas, sem dúvida. Nunca agem a tempo e horas e por isso os maus levam sempre a melhor.

- Pare aqui - ordenou a rapariga.

Saiu do carro e foi bater à porta de uma casa. Apareceu uma velha com uma criança ao colo, a dormir. Ela recebeu a criança. A velha disse qualquer coisa. Ela ficou calada. A velha fechou a porta. Ela regressou ao carro e colocou a criança no banco traseiro.

- Agora vá devagarinho para ele não acordar - sussurrou.

Estava outra vez triste e cheia de dor.

Pelo caminho virou-se para ele e disse, ou melhor, suplicou:

- Leve-me consigo na viagem ao fim do mundo.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
18/12/2025 08:00

Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais,...

Ver todos os artigos

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Qual o valor que gastou ou tenciona gastar em prendas este Natal?

Enviar Resultados
RJM PODCASTS

Mais Lidas

Últimas