Uma gargalhada aluada explodiu de repente na sala ou, se calhar, explodiu dentro da minha cabeça. Sim, a explosão ocorreu dentro da minha cabeça. Seguramente, a gargalhada aluada rebentou dentro da minha cabeça. Afinal, por mais que viva, acabo sempre por deitar tudo a perder, todos os amores, toda a fortuna, todos os sonhos, até mesmo toda a esperança e a escrita também, bem como os personagens que nela nascem, vivem e morrem. Deito sempre tudo a perder e assim há de continuar a ser, de modo que uma gargalhada aluada explodiu, de facto, na sala.
Apanhado de surpresa, o grupo estremeceu em simultâneo. Houve gritos e interjeições de susto, olhos arregalados e palavrões do piorio. Eram seis pessoas e um papagaio e estavam reunidos à mesa, no restaurante de um hotel decrépito, em noite de lua cheia, para uma sessão de leitura baseada em seis dos meus cadernos de apontamentos.
Por mais estapafúrdia que pareça, esta história tem raízes na realidade e os personagens também. Encontrei-os numa ilha algures perto da costa oriental africana, onde passei uma curta temporada há muitos anos, depois de, uma vez mais, ter deitado tudo a perder.
O meu padrão é este: fico sozinho e depois parto à procura de mim e, mesmo sabendo que jamais me encontrarei, o caminho traz-me sempre de volta ao presente, pelo que naquela ocasião vi o dono do Hotel, apanhado pelo susto da gargalhada aluada, atirar um caderno pelo ar e o caderno voou como um pássaro quadrado por cima do candeeiro central e vi o administrador do Município entornar um copo de aguardente na cara, soltando uma trovoada de blasfémias, e também vi o juiz presidente da Comarca perder o equilíbrio na cadeira e espalhar-se no chão como um verdadeiro alcoólico, pois ele era mesmo alcoólico.
Já o doutor Dedo Mulloia ficou com as pernas e os braços a tremer e eu sei que ele sentiu um forte aperto no coração e pensou que ia morrer, ao passo que o padre Inocêncio Noha pôs-se de pé num abrir e fechar de olhos e pensou que, afinal, não acreditava em Deus, pensou que nunca tinha acreditado em Deus, pensou que nunca iria acreditar em Deus, e a lindíssima Dona Beleza Móvel, uma das mulheres mais estranhas, belas e misteriosas que conheci nos meus 58 anos de vida, perdeu a cor e petrificou-se, e papagaio Pita acordou sobressaltado, bateu as asas e levantou voo numa gritaria desalmada.
A ilha era um lugar mágico. Eu ficava quase todos os dias no hotel a escrever de manhã à noite e isso acabou por despertar uma enorme e destravada curiosidade nas pessoas, sobretudo na elite que frequentava o restaurante, o único que havia na vila com o mínimo de condições, já que os restantes não passavam de barracas e tascas miseráveis. A certa altura, decidi dar uma volta pelo interior da ilha e deixei as minhas coisas no hotel, incluindo seis cadernos de apontamentos.
A gargalhada aluada aumentou de intensidade, mas o grupo já tinha recuperado o tino e ficou boquiaberto a olhar para a janela grande, onde se desenhava o rosto estouvado de Muluko, o doido da vila. Ria a bom rir e apontava para dentro e dava saltos. Era o seu hábito. Aparecia sem aviso à janela do restaurante do hotel e soltava uma risada frenética e os clientes eram sempre apanhados de surpresa e estremeciam todos ao mesmo tempo.
– Ninguém existe! – Disse ele daquela vez, aos gritos. – Ninguém existe!
De repente, calou-se. Ficou sério. Colocou as mãos nas costas, olhou para o chão e, como de costume, atravessou praça na diagonal a resmungar e a sua voz sumiu-se aos poucos na distância e o silêncio voltou ao lugar, mas então aconteceu que o dono do hotel sofreu um ataque psicótico e começou a rasgar os meus cadernos, a dizer que era tudo fantasia, e as folhas rasgadas espalharam-se pela sala e o papagaio Pita espevitou-se com aquele tresvario e irrompeu num voo sem sentido, derrubando garrafas, copos, quadros e até cadeiras, numa piadeira alucinada e arrepiante, até que poisou no candeeiro central.
Uma folha rasgada voou mais alto e o papagaio saltou do candeeiro e apanhou-a com as garras, deu duas voltas à sala e saiu pela porta principal. Os membros do clube de leitura precipitaram-se sobre a janela grande e viram-no contornar a praça ao luar, num voo desajeitado e pesado, como se fosse cair, dirigindo-se depois para o porto, ao longo da rua principal, até que desapareceu no escuro...