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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

27/10/2023 08:00

A Rua do Conde de Canavial é uma das que mais gosto de percorrer, pois quando o faço é porque vou ao encontro da Pat. Costumamos tomar café quase todos os dias ao meio da manhã e isso é fundamental, porque nos enche de luz e expectativa, até mesmo quando a tormenta paira no ar do mundo ou no céu do nosso amor. Nesse caso, procuramos sinais de bonança no silêncio e no olhar e eles estão sempre presentes, sempre.

Depois, volto a percorrer a rua, agora em sentido contrário, e fico sempre fascinado com a visão da torre do convento de Santa Clara, recortada em fundo verde intenso e distante. A imagem é magnífica e a sensação que me assalta é a de transpor o tempo e o espaço, de ir daqui ao infinito, de atravessar o antes e o depois de todas as coisas. E morro de felicidade! Sim, morro de felicidade nos dois sentidos da rua!

A morte, porém, dura apenas um instante e mal dá para a sentir.

Eu digo para mim:

- Isto não é a morte, Duarte. Isto é a tua vida.

Encontrei este texto perdido no meio dos meus apontamentos quando andava à procura de assunto para a crónica desta semana. Data de 2019 e aparece num caderno seguido de uma série de frases soltas e pequenos trechos, ideias avulsas que depois seriam usadas para desenvolver, amassar, unir e dar corpo à história, cujo fim lamentavelmente já não me lembro qual seria. Seja como for, gostei muito de ler as notas e vou agora expô-las urbi et orbi, como se se tratasse dum poema para dizer nada, ou talvez para dizer quase tudo, ainda por cima adornado com uma mão cheia de aforismos à maneira.

Ora vejam:

Esta é a luz da casa da minha mãe.

Para eu te amar da cor da terra.

"Uma escrita de cortar a respiração e, por vezes, também afrodisíaca".

Uma crise de fé.

Os momentos perfeitos que nunca vivi contigo.

As voltas à toa pela cidade, os passos, as pessoas, a lógica de tudo isto.

O vazio é a casa de toda a criação.

A inexistência de Deus faz parte da minha riqueza interior.

Katmandu. Patinagem artística no gelo. O pôr-do-sol no Lago Niassa.

Já vi tantas coisas bonitas em tantos lugares do mundo.

"Não penseis que vim trazer paz à Terra; não vim trazer a paz, mas a espada" (Mateus 10:34).

Eu opero no mundo do silêncio.

Quem não fala de si quando conta uma história ou expressa uma opinião, não fala de nada.

Para dizer amor, eu tenho de dizer Pat.

Depois, quando voltei para a cama, já não consegui sonhar mais. O pensamento, que é o lugar onde o bem e o mal coabitam dentro de nós, embalou-me na recordação de histórias antigas, quando todos os meus desejos eram árduos, informes e voavam desajeitados no firmamento da minha existência.

Prossigo isolado e desolado.

A realidade é a tua solidão.

O modo como a tua vida está dentro desta casa é muito mais evidente na tua ausência do que na tua presença, tal como o modo como eu melhor te agarro é quando já não estás ao alcance das minhas mãos. É por isso que a vida será sempre a estrada do desejo perdido.

Há pessoas que acentuam o nosso lado bom e outras que fazem exatamente o contrário - acentuam o lado mau; mas ninguém, jamais, é capaz de anular a parte que fica a perder.

Tudo o que é transparente, exceto os espelhos, soa-me a falso.

Eram estas a notas no caderno e eu creio que muitas foram já utilizadas na redação de outras crónicas ao correr dos anos, para trás e para a frente. Mas, na verdade, todo este material visava apenas descrever em 3500 carateres o ato e o sentimento de atravessar a Rua do Conde de Canavial, para cá e para lá, quase todos os dias de manhã, em 2019, quando eu ia tomar café com a Pat, meu amor, minha mulher, coisa que continuo a fazer quase todos os dias de manhã com o mesmo vigor, a mesma expectativa, a mesma comoção, como se hoje de manhã continuasse a ser a manhã de então.

Além disso, há na rua um bar que tem ao dispor uma grande variedade de cervejas de alta envergadura… Gosto muito de lá ir!

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