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Artigo de Opinião

11/12/2021 08:01

Por momentos o homem espreita pela janela a cidade que se agita numa avidez esbugalhada e gulosa, num burburinho frenético, como se o mundo estivesse para acabar, antes de desviar o olhar numa indiferença indulgente.

Lucubra que o homem pensante tem de ser louco, conscientemente estranho, forçosamente levado a ser louco para sobreviver. A inteligência crava-o com o anátema frio da lucidez que o corrói como um cão raivoso e o esvazia de tudo. A realidade não tem qualquer sentido e o homem lúcido fica pejado de nada com o mundo em seu redor. E desespera numa agonia que pressente na morte o bálsamo para o desvario do real. Mas intui que o seu destino é continuar a viver na absurdez de um palco sem nexo, na busca de um qualquer ópio que o distraia da insanidade do que vê e existe. Ou isolar-se numa obscura misantropia, numa pele forçada de eremita que o aparte dos desvarios da realidade, afigurando-se louco no juízo cretino da mediania impensante. A inteligência longe de ser um desígnio meritoso, é uma condenação ao degredo, uma maldição que os deuses ou os demónios cravam no ser.

O seu toque com a frivolidade humana bastava-se ao inevitável cumprimento ao tipo da mercearia e à escuta alheada dos seus lugares comuns sobre os preços ou as tricas inúteis do futebol. O merceeiro puxava por ele como que para medir o seu grau de loucura, mas o homem atento à desfaçatez desconcertava-o com a resposta que era suposto ouvir na sua enfadonha vulgaridade. Fazia o esforço de preencher as expectativas idiotas de quem o queria avaliar.

Desceu à mercearia e enquanto parecia escolher a fruta que mecanicamente sempre levava, a mulher do lado, esbranquiçada e de olhos cansados, disse como se falasse consigo própria: "que sentido fará estarmos nós aqui a escolher mercearias para uma fome que não temos, quando nos é tão indiferente o rebuliço do mundo lá fora?" O homem fixou-se no olhar esbatido da mulher e os seus olhos pareceram conversar por telepatia. Como no chamamento de uma atracção irresistível, foram sentar-se lado a lado numa mesa da esplanada de defronte sem trocar uma palavra.

Estava um sol carinhoso e ali ficaram em silêncio até à obliquidade dos raios lhes tirar a luz e os fazer despertar de um sonho cúmplice e infinito. A mulher levantou-se e fixando o homem nos olhos disse-lhe: "fico-lhe grata por esta conversa tão intensa e profunda". Ao que o homem aquiesceu sorrindo-lhe num esgar agradecido. E assim se despediram reconfortados numa simbiose de mútuo desencanto da vida e de esperança. Na porta, o merceeiro exibia o seu sorriso gorduroso.

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