Como lembrava Agostinho da Silva: “O Homem não nasceu para trabalhar, mas sim para criar”
O que aconteceria se, por um momento, nos permitíssemos o luxo de não sermos úteis? A pergunta soa a heresia numa era que transformou a otimização do tempo numa nova religião e o nosso calendário num altar sagrado onde cada minuto vago é um pecado a ser expiado com mais uma tarefa, mais um projeto, mais um scroll “informativo”. Vivemos sob o feitiço do hustle, a glorificação do excesso de trabalho disfarçado de propósito de vida. As redes sociais transbordam de rotinas de sucesso que começam antes do sol nascer e de gurus que nos ensinam a transformar cada paixão num side hustle, cada momento de lazer numa oportunidade de networking. A mensagem é clara e implacável: parar é fracassar. O descanso só é legítimo quando serve para “recarregar baterias”, ou seja, quando é uma pausa instrumental para garantir a produtividade futura. Abdicámos do descanso como fim em sim mesmo.
Esta lógica não nasceu do nada. É o eco de um sistema económico que invadiu a nossa esfera mais íntima, que nos convenceu a ver-nos não como seres humanos, mas como “capital humano”. Um recurso que precisa de ser constantemente gerido e valorizado no mercado da vida de forma optimizada. O nosso valor já não reside em quem somos, mas naquilo que produzimos. E, neste paradigma, o ócio, a contemplação, o chamado “dolce far niente” tornam-se não apenas improdutivos, mas subversivos.
É precisamente aqui que reside a urgência de uma rebelião silenciosa: a recuperação do direito à inutilidade. O tédio, que tanto nos esforçamos por evitar com a estimulação constante dos ecrãs, não é um vazio a ser preenchido, mas o espaço fértil onde a criatividade, a introspeção e as ideias genuinamente novas podem emergir. É no aparente “nada” que a mente se liberta das tarefas imediatas e começa a divagar, a conectar pontos. Ao preenchermos cada segundo com produtividade, estamos, paradoxalmente, a tornar-nos menos criativos e mais previsíveis. Ao mesmo tempo sentimo-nos cada vem mais exaustos.
O burnout, essa epidemia da nossa era, não é uma falha de gestão de tempo individual, como a cultura da autoajuda nos quer fazer crer. É a consequência lógica e inevitável de um sistema que exige de nós uma performance infinita com recursos finitos. É o corpo e a mente a dizerem “basta” a uma cultura que confunde movimento com progresso e ocupação com significado. Recusar esta tirania não exige grandes revoluções, mas pequenos atos de sabotagem quotidiana. Desligar as notificações, caminhar sem destino, sentar num banco de jardim sem outro propósito que não seja ver o tempo a passar. Permitir-se o tédio. Defender as atividades “inúteis”, aquelas que fazemos por puro prazer e não para enriquecer o currículo ou o perfil do LinkedIn.
Quando invoco Agostinho da Silva, não estou a advogar a abdicação do trabalho remunerado nem a glorificar a preguiça. Pelo contrário: afirmar o primado da criação é reconhecer que nem todo o tempo útil se traduz em contratos, faturação ou até em likes. A criação, seja ela intelectual, artística ou relacional é também trabalho. Trabalho que exige tempo, silêncio e condições para amadurecer. Um aspeto importante que quero salientar é o facto de que, primeiro, reivindicar tempo para criar não apaga as desigualdades económicas nem nega a necessidade de emprego, exige antes políticas que garantam a dignidade laboral e renda mínima, porque só quem tem segurança pode arriscar criar. Segundo, confundir criação com escapismo retira-nos a oportunidade de pensar modelos económicos que valorizem o trabalho de cuidado, a investigação, a cultura e educação. Tarefas essenciais que hoje são frequentemente sub-remuneradas. Não se trata, portanto, de deixar de trabalhar, trata-se de trabalhar de outra maneira. Uma maneira com mais sentido, justiça e sustentabilidade.
Num mundo obcecado com o “fazer”, talvez o ato mais radical e mais humano seja simplesmente o de “ser”. De recuperar o tempo que não é medido em eficiência, mas em experiência. A verdadeira produtividade, afinal, talvez seja a de conseguir construir um sentido para a vida que escape à lógica impiedosa da fábrica e do mercado. É tempo de reivindicar o nosso direito a não fazer nada.