Sentou-se ao balcão e bebeu o primeiro de três uísques, todos servidos pelo empregado novo, um rapaz atarracado que parecia ser praticante de culturismo. Antes estava lá uma moça magrinha e triste, mal falava, mal sorria, e tinha um jeito de andar que lhe metia pena, embora não soubesse explicar porquê.
O dono do bar não gostava dela.
- Quando o contrato acabar, vou despachar esta gaja - disse-lhe um dia.
O dono do bar era seu amigo há muitos anos e falou em sussurro, como se fosse um segredo, com a mão a servir de pala no canto da boca e a boca bem encostada na orelha, não fossem as palavras fugir e cair nos ouvidos do Diabo.
Ele ficou ainda com mais pena da rapariga, coitada, e estava agora a pensar nela. Tinha saudades e lembrava-se do dia em que decidiu salvá-la, embora não soubesse de quê. Ia salvá-la, pronto. Ou seja, ia aconselhar a moça a apresentar a demissão antes do termo do contrato, só para o porco do patrão não ter o prazer de a despedir. Era um disparate jurídico, uma perda gratuita de direitos, mas também uma atitude carregada de autodeterminação e vitória.
O bar fechava às 23 horas e ele esperou na rua que ela saísse e depois foi atrás, sentindo-se esmagado pelos passos da rapariga no vazio da noite. Tocou-lhe no ombro e então percebeu que parte da sua pena ocultava um tremendo desejo sexual. Ela virou-se sem qualquer surpresa.
- Vem tomar um café comigo - disse ele.
- Não posso. Vou buscar o meu filho.
- Eu levo-te no meu carro. Onde é?
Era do outro lado da cidade, ele não sabia o caminho.
Por aqui, por ali, dizia ela no lugar do morto, à esquerda, à direita. De repente estava feliz, como se fosse outra pessoa, e narrava a sua vida de fio a pavio com desembaraço e sem pudor, do nascimento ao presente, o maldito presente que a traz abandonada, desprezada, divorciada, com um filho pequeno nos braços, luz da minha alma, dizia ela, mas que fica em casa de uma senhora, a quem entrega um terço do ordenado para cuidar dele até sair do trabalho e o trabalho é sempre em bares que fecham às tantas.
- É duro - disse ele.
- É a vida - respondeu ela.
Trocaram um olhar intenso no escuro da cabine e a seguir foram tomados pelo silêncio, até que ela sublinhou:
- É a vida dos pobres.
E desatou a rir, como se tivesse dito uma piada.
- Conte-me coisas de si - pediu.
Ele disse-lhe que a sua vida era simples e sem sabor, exceto o das bebidas que ingeria no bar, disse-lhe que vivia sozinho e passava os dias a saltar de casa para o escritório, do escritório para o bar, do bar para casa, disse-lhe que gostava de escrever para libertar as mágoas e que tinha muita dificuldade em dar passos para além do pensamento, disse-lhe que tudo em si eram histórias roubadas, disse-lhe também que estava farto de tudo e em breve, talvez amanhã ou daqui a dez anos, ia partir numa viagem até ao fim do mundo, provavelmente para nunca mais regressar.
- Era bom que ficasse aqui - disse a rapariga de rompante.
- Ah, sim?! Porquê?
- Porque você é boa pessoa e fazem cá falta boas pessoas.
Ele ficou alarmado e deitou por terra o plano para salvá-la. Era uma intriga e as boas pessoas não fazem intrigas, mas ficou a pensar que o mal do mundo decorre da inação das boas pessoas. A culpa é delas, sem dúvida. Nunca agem a tempo e horas e por isso os maus levam sempre a melhor.
- Pare aqui - ordenou a rapariga.
Saiu do carro e foi bater à porta de uma casa. Apareceu uma velha com uma criança ao colo, a dormir. Ela recebeu a criança. A velha disse qualquer coisa. Ela ficou calada. A velha fechou a porta. Ela regressou ao carro e colocou a criança no banco traseiro.
- Agora vá devagarinho para ele não acordar - sussurrou.
Estava outra vez triste e cheia de dor.
Pelo caminho virou-se para ele e disse, ou melhor, suplicou:
- Leve-me consigo na viagem ao fim do mundo.