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Artigo de Opinião

GATEIRA PARA A DIÁSPORA

22/11/2022 08:00

As coordenadoras são Catarina Claro e Cristiana de Sousa (também conhecida como Andorinha), ambas da Associação Casa Invisível. Pretende-se, assim, dar trégua aos estereótipos sobre os lugares de reclusão e os que a ela são submetidos. De um universo prisional de cerca de 312 reclusos, incluindo 12 mulheres, o projecto Trégua dispunha inicialmente de doze participantes masculinos - incluindo um senhor indiano que foi entretanto libertado - e conta agora com nove elementos (todos da Madeira, à excepção do açoriano Pedro). O projecto tem contado com diferentes artistas nas suas áreas de intervenção: costura com a wearable art, o design gráfico, serigrafia, cerâmica e arte pública, e os participantes encontram-se actualmente a produzir sacos de pano-cru que irão ser vendidos - com outros produtos - por altura do Natal. No pátio interior, pintaram um grande mural, em tons de vermelho, branco e negro onde se pode ler «Não somos os nossos erros». Ouço Catarina dizer que quando há dias chovera pôde ver que «o coração [do mural orientado pela Cristiana] está sempre tapado da chuva». É bom saber que o coração está sempre abrigado. Passámos por corredores, esperámos para deixar passar o pão nosso de cada dia preparado pelos reclusos na cadeia, e o odor do que nos alimenta precedia o sorriso de quem o transportava. Parámos também para deixar passar os que queriam assistir à missa da quinta de manhã. Rostos que diziam bom dia e seguiam caminho. Chegámos à parte das oficinas onde decorria o projecto e o Nélio já estava instalado numa das máquinas Singer. Já costurava em casa com uma máquina de pedal manual - como também me disse o Miguel. O Fábio instalara-se numa mesa ampla e preparava meticulosamente as alças dos sacos enquanto conversávamos. «Desde o rolo [de pano-cru] até ao primeiro saco [foram] cerca de 18 dias», disse-me, detalhando os centímetros necessários para que nada falhasse. Apesar de, no início, não estar muito para aí virado, agora «já não [se dá] sem isto». Com orgulho, confessou-me que fizera o gato, o que se via no mural (cada um havia escolhido o seu bicho). Votara pela primeira vez na prisão, influenciado por um amigo que lhe dissera que era importante interessar-se. A páginas tantas, falou-me da vida lá fora, inicialmente pensei que falava do estrangeiro, mas não, falava do exterior da cadeia. A que distância fica o mundo por detrás daquela porta perra que ajudou o guarda Pacheco a fechar?

O Petito juntou-se à conversa e falámos da noção do tempo na cadeia, das bibliotecas do EPF - onde oficiara -, do boletim do mesmo estabelecimento, «A Voz», e de como o Trégua é «diferente da cadeia» e da sua rotina pátio-cela. Sublinha que «a beleza do projecto é trazer pessoas de fora cá dentro», o que é partilhado por Armando Pereira, o adjunto do Director do EPF, que assinala estes elementos do exterior como algo de fundamental para a ressocialização, que, prossegue, não cabe apenas aos actores penitenciários, mas a toda a comunidade envolvente. É um «esforço conjunto» pois as pessoas estão apenas momentaneamente na cadeia.

O Dória foi o primeiro a abordar-me nesse dia com um «Sprechen Sie Deutsch?» [Fala alemão?] ao saber que eu morava noutras paragens e ele próprio havia morado na Alemanha. A exemplo do nome da associação que gere o projecto, perguntei-lhe se a prisão era uma casa invisível. Disse-me que era um «hotel», mas que não gostava de lá estar. O mais importante era ter o pai lá fora à sua espera, que era quem tinha na vida, e que falava com ele nas visitas Skype (implementadas pelo Diretor do EPF para suprir a ausência de visitas provocada pela pandemia e que perduraram). Falámos também das possibilidades de educação, chegando muitos reclusos ao EPF com relativamente baixa educação formal, e disse-me que queria tirar o Curso Profissional de Línguas. Fui informado de que três reclusos haviam, no cumprimento da pena, concluído o ensino superior, e alguns dos participantes mencionaram que frequentavam o ensino secundário.

O Maurício acabava de chegar da entrevista com o André Vieira - que documenta o projecto para as redes sociais e prepara um documentário sobre o mesmo. Como muitos, o Maurício disse-me que no início não foi com muita vontade para o projecto mas que agora espera continuar, e mencionou a importância da professora Ana Francisco, a coordenadora pedagógica do EPF, para a frequência deste projecto. Conversa vai, conversa vem, dissera-lhe que, no liceu, aprendi que a expressão «errar é humano» tem uma segunda parte que não é muito conhecida, ao que o Maurício prontamente retorquiu: «mas nós não somos os nossos erros».

Muitos com quem falei mencionaram a importância do projecto Trégua enquanto trabalho, que nem sempre abunda num contexto prisional. O Pedro mencionou-o como algo que havia mudado o seu rumo na cadeia. «Estava muito em baixo e ajudou-me.»

As sociedades democráticas, como o bordado madeira, só podem ver a sua qualidade aferida pelo avesso, mas para isso é preciso não ignorar esse mesmo avesso. Contudo, já se percebeu que a Catarina e a Cristiana não deixarão que isso aconteça. Não percamos de vista o avesso nem o avesso da vista!

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