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Artigo de Opinião

Advogada

5/08/2022 08:00

Pequenina e frágil, trazida para a Ilha pela minha amiga Cristina, ninguém diria o sarilho com pernas, pêlo e bexiga que aquele ser minúsculo se haveria de tornar.

Não só fazia uso da uretra em qualquer sítio, preferencialmente na carpete bege claro da sala, como deixava fluir o produto final da digestão nos sítios mais inesperados. Sim, ela foi treinada, mas como se diz de algumas pessoas: "não dava uma para a caixa, na escola, foi trabalhar para a fazenda". Charlotte não foi trabalhar para a fazenda, com diagnóstico empírico de hiperatividade, Charlotte passou a sua vida a tentar nos lixar a nossa. Não nos interpretem mal, foi tratada como uma princesa, mas até a Xanda, a minha amiga dos animais concordava que a cadela era "louca".

Um dos seus passatempos preferidos era lamber o vidro da janela, não sei o que as suas papilas gustativas tiravam daquele exercício, mas lambia-o até ficar fosco de tão ensebado. Para quem acredita na reencarnação, tenho a certeza que foi uma atleta de velocidade, ou uma gazela na vida selvagem, porque mal se via com uma fresta duma porta aberta fugia a sete (quatro) canelos, desalmadamente, como se todos os cobradores de impostos a perseguissem, sem motivo, pelo menos aparente, gostava de dar à canela, e nos atazanar o juízo.

Na passagem de ano, Charlotte assistia aos fogos no nosso colo, não que tivesse medo, ela não tinha medo de nada, porque sim. No final de uma das festividades os meus pais saíram para a zona do elevador, onde outras pessoas também aguardavam transporte vertical. Bastou abrir 15 cm de porta para me voltar a despedir para que a canídea saísse espavorida, começou a abanar a cauda e a aspergir todos os presentes com urina, oferta da casa. Ficaram respingadas lantejoulas, calças e smokings até aos joelhos, até me por, a mim, quase de joelhos, de vergonha.

Noutra ocasião, estava Charlotte à guarda dos meus pais, conseguiu sair por uma fresta da porta e acabou na Igreja, agarrada pelo carrolo, teria ido rezar a Santo Antão? Não creio, foi mesmo cheirar todas as esquinas e mais algumas, deixando presentes e ausentes de coração nas mãos. Mas, estas não foram as peripécias mais graves, não, senhor! Charlotte acompanhava-nos em idas ao Porto Santo, onde ficava livre numa grande casa com muro de 80 cm e vedação de mais cerca de um metro. Certo dia estava a tomar duche e ouvi o meu filho, ainda pequenino, numa gritaria e o seu pai a praguejar. Charlotte, qual primata, trepara a vedação e fugira de casa. Ao perceber a agitação saí de camisa de noite branca, cabelo à Dragonball Z, descalça e sem óculos, para encontrar Joãozinho num pranto e o marido entalado pelos calções na vedação que, desajeitadamente tentara subir para apanhá-la. Sem pensar duas vezes corri o mais que pude, naqueles preparos, estrada fora, a chamar a bola de pêlo castanho e branco só para vê-la se afastar mais, ver como quem, diz, vislumbrar uma manchinha irrequieta, tanto quanto os meus olhos sem vidraças conseguiam alcançar. A minha figura, a correr descalça na estrada deve ter sido o mais perto que estive de ser confundida com uma doida à solta, mas não tanto quanto a que corria à minha frente. Finamente, consegui alcançá-la escondida debaixo de um carro. Ficou de castigo, o resto da tarde, metida na garagem e não voltou ao Porto Santo.

Charlotte morreu a semana passada, com nove anos, o seu coraçãozinho acelerado somou todas as peripécias da sua vida e sucumbiu. Deixou a sua ração estreada há pouco, ao seu amigo Paúl, o seu igloo ao que se seguir e muitas saudades dos olhos ternos, língua alegre e cabeça doida.

É tão grande o vazio que nos deixa, quanto as arrelias que nos provocou. A janela continua ensebada, o igloo está vazio, as mantas mantêm os pelinhos cor de mel, Charlotte foi para o céu dos cães e, estou certa, a dar uma mijinha na carpete de Santo Antão, que já deve estar de mãos à cabeça.

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