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Artigo de Opinião

Por causa deste projeto, fui desafiado pelo meu amigo David Leça a participar no VII Encontro de História Regional e Local na Escola, com a temática ‘Pestes e Epidemias. A Saúde ao longo da História’. Sim, eu sei o que estão a pensar e ele próprio, quando esteve na RTP-Madeira, ouviu essa pergunta: mas agora só se fala disto? Bem: hoje há muitas histórias que se repetem e o passado pode servir de lição.

As memórias de cada um, para lá da construção institucional da história, podem servir como antídoto para a desconstrução da modernidade e a transformação da nossa realidade, como mostra a atual pandemia. Podem fazer que esta crise da Covid-19 seja mais do que uma luta entre saúde e economia, entre vacinação e negacionismo.

Parti, por isso de um dia específico. 1 de outubro de 1902. A data do primeiro sepultamento no Cemitério de São Roque do Faial (Lombo dos Palheiros), após décadas em que os habitantes eram, muitas vezes enterrados, na paróquia vizinha do Faial. Não é uma data óbvia, porque o que está nos livros é a inauguração do próprio cemitério, a 24 de setembro, com a presença do bispo do Funchal e toda a solenidade devida.

A mim interessa-me mais saber que o primeiro de nós a repousar neste local foi a pequena Carolina, de 14 meses. Dela, hoje, não permanece nada, como de tantos outros. A terra engole-os. Nem o cemitério tem lugar para eles, numa triste metáfora para aquilo que tem sido tantas vezes a história deste meu lado da ilha, um sem-lugar, a não ser nos cartões postais e promoções turísticas.

Foi uma de tantas, de centenas de crianças que morreram antes da vida adulta (entre 1860 e 1911 identificamos quase 500, numa freguesia que, nesse período, nunca chegou aos mil habitantes). Outros tempos, felizmente, mas a ferida permanece, na memória coletiva, porque uma perda de tal dimensão, de histórias que poderiam ter sido e nunca foram, é mais do que uma soma de nomes e datas: é uma sombra sobre a construção coletiva que nunca se ilumina, apenas se substitui por outra sombra, a dos que partiram para não voltar, desertificando um lugar onde se morre agora de velhice e de solidão.

As memórias das pessoas têm estas dimensões de sensibilidade e emoção que muitas vezes escapam à racionalidade. Para além dos papéis, dos números, dos documentos, dos poderosos, há sempre pessoas de carne e osso, com a sua história, que pode parecer irrelevante, mas que é um testemunho fundamental do tempo que passou, vivido por dentro. Por isso, não deixo de me emocionar quando vejo nos registos os filhos perdidos pelos meus tetravós ou trisavós. Porque as suas lágrimas construíram, também, muito do que sou e da terra que me deixaram.

Se essa mesma terra os engoliu, a sua memória pode fazer que a história seja menos fria, distante, diria quase burocrática. Porque é, em última instância, também a história de cada um de nós. E vale a pena contá-la.

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