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Artigo de Opinião

O ESPÍRITO DOS TEMPOS

26/04/2022 08:00

O neto Guilherme era Kaiser da Alemanha, o neto Jorge era Rei de Inglaterra e a neta Alice Vitória (posteriormente Alexandra) era mulher de Nicolau II, o último Czar da Rússia. Nesta teia, parecia inexequível que uma escaramuça nos Balcãs descambasse numa Guerra Mundial e num desastre com 10 milhões de mortos que fez implodir os impérios alemão, austro-húngaro, otomano e russo. Por isso, quando o conflito eclodiu e rapidamente escalou, muitos se admiraram como se vivessem um fenómeno impossível e inesperado, a tal ideia de um "cisne-negro" no conceito de Nassim Taleb. Mas à distância, análises atentas poderiam ter revelado o barril de pólvora prestes a explodir graças a decisões precipitadas de líderes bem-intencionados que, alienados ou "sonâmbulos" como defendeu Christopher Clark, aceleraram a fundo para a catástrofe. Isto quer dizer que, à posteriori, um incidente antes percepcionado como um "cisne-negro" (ou seja, impossível e inesperado), era afinal um "rinoceronte-cinzento" (ou seja, um incidente perigoso, óbvio e altamente provável). Ninguém foge de um cisne, mas ninguém controla um rinoceronte.

Os "cisnes-negros" são raros, mas as armadilhas cognitivas não. Seja por cobardia, preconceito, boas intenções, arrogância, orgulho ou ignorância, estas armadilhas impedem-nos de ver o óbvio. E é mais simples catalogar abalos não esperados como "cisnes-negros" do que como "rinocerontes-cinzentos". Mas há um outro perigo latente: quer o "cisne-negro", quer o "rinoceronte-cinzento" podem transformar-se num "rei-dragão" ou, traduzindo, podem transformar-se num evento com consequências imprevisíveis, inimagináveis e incontroláveis.

Olhemos para a guerra na Ucrânia com essa perspectiva. As pistas estavam no saudosismo imperialista e cheio de mágoa de Putin, na humilhação sofrida com o fim da era soviética, nas anexações da Ossétia do Sul e da Abecásia, em 2008, e da Crimeia, em 2014. À impunidade somou-se a fraqueza do Ocidente e a inexplicável dependência energética da Rússia. A hipocrisia dos líderes mundiais era evidente e impagável. Em privado, Putin era um carniceiro; mas em público, Putin era um parceiro privilegiado de negócios que incluíam gás, petróleo ou a organização do Mundial de futebol de 2018, uma vergonha ou a realpolitik no seu melhor. Como corolário, a nova guerra na Ucrânia não é um inesperado "cisne-negro". É, antes, um maciço "rinoceronte-cinzento", bruto, forte e perigoso. A prazo e à vista de todos vai crescer até ser um novo "rei-dragão".


100 DIAS

Da fuga da Ilha de Elba até à sua queda em Waterloo, Napoleão teve 100 dias. A expressão que muito usamos para pedir esse tempo de benefício aos novos governos deriva dessa evasão mirabolante culminada em derrota estrondosa. É verdade que devemos ser benevolentes, talvez condescendentes, com quem chega. Mas isso, neste contexto tão português, seria um pouco como se deixar ir pela armadilha do mirone e abdicar da responsabilidade individual no meio da turba. Na realidade, este governo nacional é tudo menos novidade. Não é preciso ir muito longe. Começou com um programa de governo pelintra, centrado na perpetuação de más ideias e na ausência de reformas, para continuar depois com um Orçamento do Estado copiado do ano passado, logo ferido de morte pelas circunstâncias do mundo, da vida, enfim, da realidade. Não há como perdoar porque o socialismo pátrio é uma espécie de alfaiate que, como escreveu Millôr Fernandes, "quando a roupa não fica bem, faz alterações no cliente". Daí o empobrecimento, o assistencialismo e o exército de dependentes que se criam apenas porque dá trabalho querer ser outra coisa e porque a casta superior mantém os servos com rédea e sonhos curtos. Entretanto, as fantasias já se desenham sob o manto de recados e o socialismo promete resolver todos os assuntos pendentes com a Região quando, no fundo, não quer, nem pretende, resolver nenhum. Olhando de soslaio, antevejo 4 anos e meio de tortura chinesa, empobrecimento generalizado, 9 escalões do IRS (uma piada que é recorde na Europa) e, suponho, suficientes bodes-expiatórios e culpados extracurriculares como a guerra, a pandemia, a inflação, o mundo, o planeta Marte, as alterações climáticas ou a extrema-direita para justificação dos azares do país e do Dr. Costa. Mas o azar, o verdadeiro, é a paixão autodestrutiva do indígena pelos seus captores, qual síndrome de Estocolmo, e pelo buraco escuro, qual caverna de Platão, onde o enfiaram. E se o fundo da Europa é já certeza indesmentível, a cauda dela é destino próximo. E irremediável.

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