MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

31/10/2021 07:00

Os dias de chuva eram reles e desconfortáveis. Quando se vive com as portas da vida de par em par, para arejar as paredes da alma, tolera-se a barrinha ligeira, mas chuva abundante e farta, é uma dor de cabeça.

O nevoeiro tapava as vistas e quando não se via para além das Desertas, sabia-se que se estava irremediavelmente encegueirados, perdidos e sem horizonte. Era, pois, um prenúncio de desgraça. Sobretudo ao sábado que era dia de amassar para a semana toda e as voltas do dia não se compadeciam com as más disposições de São Pedro.

A matriarca dava, porém, a palavra de ordem, que lá "por estar este tempo assim de nosso Senhor, não queria cá bicos abertos à porta". E enquanto juntava farinha, água, fermento da semana anterior e batata doce no alguidar de madeira e amassava, com reina e genica, as dores e agruras da semana, lá ia atirando ordens mastigadas com críticas. Que já devia estar a lenha a fumegar no forno, que tinha de fazer tudo sozinha naquela casa e quem é que não limpou os pés e trouxe lameiro para casa.

E de nada valia a pena o murmúrio dos catraios, que a culpa era da chuva. Era preciso fechar as portas, deixar o mau tempo fora. Os homens que não chegavam e que já deviam andar nas tabernas. Com este tempo não estão em cima da terra de certeza e tanta coisa por fazer.

A massa, entretanto, já tinha levedado e chegava à hora de tender e de fazer a reza para abençoar o pão nosso de cada dia da semana, que se avizinhava na bruma cinzenta. Era um momento solene que a canalha respeitava com um suster de respiração, numa mistura de medo, respeito e espanto, que não passava apesar da repetição do ato sábado após sábado.

Com a rotina a seguir ligeira, às vezes havia música, enquanto se varria as brasas e se metia o pão velho a torrar, para alegria da canalha e da manteiga que se derretia. "Minha avó do Picoló fez um bolo e comeu só, não deu nada aos seus netinhos, bem gulosa minha avó". Os pequenos riam-se e lambiam os dedos. Às vezes ouvia-se trovejar lá fora e dava um arrepio. Os homens chegavam à hora do almoço. "Já vens quente?", questionava. "Minha velha estás tão bonita". E os olhos da avó sorriam, numa contradição com a voz ríspida e parecia estar nos verdes anos da mocidade. "Não me atentes". A chuva prosseguia lá fora sem dar tréguas. Cheirava a pão novo e não tardaria seria hora de ir para a missa, mesmo com este "tempo de nosso Senhor".

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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