Dezembro chega devagar, como se tivesse aprendido a não interromper o que está por dentro de nós. Aproxima-se com passos de lã: luzes nas janelas, frio nos dedos, uma súbita vontade de recolhimento. E é nesta altura que reparo mais nos pequenos milagres, aqueles que quase ninguém vê, mas que fazem a diferença entre um ano que se resgata e um ano que nos escapa. Entre eles, o milagre discreto da leitura.
Este ano, encontrei-me várias vezes a abrir livros portugueses. Há qualquer coisa de profundamente esperançosa em ler quem escreve a partir da mesma língua que eu habito, da mesma paisagem emocional onde cresci.
“O último avô”, de Afonso Reis Cabral, foi um desses gestos de retorno às raízes. Fala-nos de memória, famílias, ausências e heranças, temas que, em dezembro, parecem ganhar um brilho extra, como se o passado nos viesse visitar. Ao lê-lo, senti aquele milagre antigo de reconhecer-me no outro: perceber que a literatura é ponte, é laço, é casa.
Do lado oposto da intensidade, encontrei alegria luminosa em “A casa invisível”, de Francisca Camelo, uma obra para leitores mais jovens, cheia daquela magia que só a infância consegue sustentar sem esforço. Gosto sempre de pensar na criança que abrirá este livro pela primeira vez durante o Natal. Talvez o receba embrulhado, talvez o leia numa manhã fria, talvez nem saiba que, naquele instante, acendeu dentro de si uma luz que lhe ficará para sempre. Esse é um dos milagres mais bonitos: o milagre de começar a ler.
E houve, ainda, o encanto plural dos “Contos de visitar amigos e outros contos”, de Luísa Costa Gomes. Pequenas janelas abertas para vidas alheias, histórias que cabem na palma da mão, mas que expandem o coração. A multiplicidade destas vozes recordou-me que a leitura é uma espécie de encontro comunitário: mesmo quando lemos sozinhos, nunca estamos verdadeiramente sós. Há sempre alguém que escreveu, alguém que sentiu, alguém que partilha connosco aquele mesmo instante, ainda que à distância de páginas.
No clube de leitura que dinamizo, vejo estes milagres a acontecer quase sem intenção. Pessoas que se sentam juntas, mesmo que não tenham lido o livro do mês; pessoas que chegam por curiosidade, por saudade, por vontade de pertencer. Às vezes, basta uma frase, um desabafo, uma gargalhada inesperada para perceber que os livros nos aproximam no que temos de mais humano. E dezembro, com a sua promessa de recomeço e comunhão, torna tudo isto ainda mais visível.
Oferecer um livro no natal é, para mim, um dos gestos mais íntimos que existem. Não é só escolher uma história; é escolher uma possibilidade. Dizer “este livro encontrou-me, talvez te encontre a ti também.” É oferecer companhia, horizonte, esperança. É acender uma pequena vela nas mãos de alguém.
Enquanto o ano fecha as suas últimas páginas, olho para a estante e sinto gratidão por estas vozes portuguesas que continuaram a escrever, mesmo quando o mundo parecia demasiado ruidoso. Foram faróis, foram abrigo, foram lembrança de que a literatura nos salva silenciosamente, uma frase de cada vez.
E talvez seja este o verdadeiro milagre de dezembro: a certeza de que, mesmo nos dias mais escuros, continuamos capazes de nos iluminar uns aos outros. Com gestos, com presença, com palavras.
Com livros. Sempre com livros.