«It exists as a paradise for scholars who, like poets and musicians, have won the right to do as they please and who accomplish most when enabled to do so».Abraham Flexner (1939), in “The Usefulness of Useless Knowledge”
Há cerca de cem anos, no rescaldo da Grande Guerra (1914-1918), vários movimentos populistas radicais e nacionalistas começaram a ganhar expressão em toda a Europa.
No final da década de 20 e no início da década de 30 do século XX, Mussolini e Hitler, que se admiravam e inspiravam mutuamente, chegaram ao poder. Começaram por cavalgar a onda da desilusão, do ressentimento e do medo, sempre o medo, que não se coibiam de incutir e incitar até que se tornasse em ódio. Mas contaram também com a ajuda de partidos conservadores ou de direita mais moderada, que esperavam, assim, controlar os líderes destes novos movimentos e a sua crescente popularidade.
No entanto, uma vez alcançado o poder, foram rápidos na execução das medidas mais drásticas que tinham prometido, desmantelaram as instituições que se baseavam em relações de equilíbrio de poder consentido, mas que de facto não estavam preparadas para se defender da hiperconcentração de poder e dos métodos violentos utilizados: partidos políticos, sindicatos, universidades, academias e outros polos de produção científica ou artística, tribunais e até mesmo os parlamentos, foram desautorizados, desmembrados, ilegalizados. Ninguém escapava à visão nacionalista e utilitarista: só sobreviveriam se se alinhassem com o discurso oficial ou se fossem úteis aos novos regimes.
No caso das pessoas individuais, a política foi a mesma. Pior ainda, se fossem estrangeiros e é bom lembrar que os judeus na Europa central foram, durante séculos, considerados estrangeiros ou tratados como tal. As alternativas eram a miséria, a expulsão o êxodo ou mesmo a morte.
Em 1930, Abraham Flexner, em conjunto com os filantropos Louis Bamberger e Caroline Bamberger Fuldos, fundou o Institute of Advanced Studies (IAS), em Princeton, no estado de New Jersey, nos EUA.
Princeton era uma cidade pacata onde já havia uma pequena universidade, com a qual o IAS mantinha laços académicos e saudáveis, mas de quem era completamente independente. A ideia fundacional era outra: um espaço de conhecimento pelo conhecimento, sem aulas, sem programas ou graus académicos, sem laboratórios, mas, ainda assim, um espaço livre e aberto.
Começou por compreender três áreas do saber, Matemática, Estudos Sociais e Estudos Económicos e Políticos, a que mais tarde se juntou uma quarta, dedicada às Ciências Naturais, sempre com a preocupação de desenvolver e aprofundar o conhecimento, porque Flexner não tinha qualquer preocupação com a sua aplicabilidade.
No seu ensaio, publicado inicialmente no número 179 da Harper’s Magazine, de Junho/Novembro de 1939 (de onde extraí a citação de abertura deste artigo, em que apresenta “o seu” IAS), Flexner dá alguns exemplos eloquentes de como já então sabia da importância da ciência fundamental para o progresso da humanidade.
Por essa altura, pouco antes do início da II Guerra Mundial, o IAS de Princeton já era um dos principais destinos de cientistas e académicos que fugiam da intolerância e do utilitarismo científico Europeu. Personalidades como Niels Bohr, de Copenhaga, von Laue de Berlin, Levi Civita de Rome, Andre Weil de Estrasburgo, Dirac e G. H. Hardy de Cambridge, Pauli de Zurich, Lemaitre de Louvain, Wade-Gery de Oxford, vários cientistas americanos de Harvard, Yale, Columbia, Cornell, Johns Hopkins, Chicago, California e, mais tarde Albert Einstein (em cuja ida para os EUA, Flexner esteve pessoalmente envolvido), J. Robert Oppenheimer, entre muitos outros encontraram ali um espaço seguro e de promoção do conhecimento.
Muito do conhecimento produzido por estas pessoas acabou por ter aplicabilidade e utilidade prática nos nossos dias. Mas talvez ainda não tivesse sido alcançado se estivessem a trabalhar com um objetivo prático, comercial ou empresarial.
Ontem, no dia 26 de dezembro, de forma quase despercebida, foi publicado o diploma que cria a AI2, a agência que irá substituir a FCT no apoio à investigação científica em Portugal. Em julho, quando o Ministro anunciou a sua extinção, disse que queria um organismo independente, mas, na realidade, não parece confirmar esse objetivo: “os Domínios Estratégicos [estabelecidos (...) em documentos de planeamento estratégico aprovados pelo Governo] são (...) focados em investigação aplicada, inovação, tecnologia e projetos disruptivos”.
Em 1930 Abraham Flexner já tinha percebido a importância da curiosidade pura e da investigação em ciência fundamental, incluindo as ciências sociais, e de dar condições aos cientistas para saciar essa curiosidade.
Passados 95 anos, em Portugal, andamos a investir dinheiro público numa visão de ciência utilitarista, em vez de reconhecer a utilidade e o Valor da Ciência “Inútil”.
É este o caminho para que os nossos melhores não procurem paraísos noutros IAS?
José Júlio Curado escreve ao sábado, de 4 em 4 semanas.