MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

26/10/2025 07:30

Toca o telemóvel. É a minha avó e meia preocupada diz-me: “A hora vai mudar, já estamos no Outono. Vais ter de vir cá a casa acertar os relógios”. O que fez-me lembrar de um conceito curioso. Talvez não tenha nome, mas todos o reconhecemos: aquela diferença poética entre gerações, não só nos gestos e preocupações, mas sobretudo no modo como cada uma entende o mundo e o tempo.

A minha avó nasceu no final dos anos 30. No tempo do rádio a válvulas, missa dominical, pão racionado e cartas escritas à mão. Viveu tempos em que o futuro era uma abstração longínqua e o presente, um lugar de sobrevivência. Hoje, já quase com 90 anos, a minha avó continua a acordar com o mesmo zelo de sempre, a fazer o café com a colher medida, e a olhar com olhos de quem consulta oráculos, para os muitos relógios que tem em casa. Relógios. De parede, de mesa, de pulso, do forno, do micro-ondas, do rádio velho. São quase tantos como os santos que decoram a sua cristaleira. E quando muda a hora – ora de verão, ora de inverno – instala-se uma missão solene: acertar cada um deles. Essa missão cabe-me a mim. Não é apenas uma questão de utilidade. É ritual, é precisão, é o tempo que deve estar no seu lugar.

Nós, geração millenial, rimo-nos com ternura e com uma certa condescendência. Para nós, o tempo está no telemóvel, sincronizado com servidores invisíveis nos céus da internet. O micro-ondas pode estar a piscar uma hora errada durante meses que ninguém se importa. Um relógio de pulso é, na maior parte das vezes, uma peça de design, uma extensão de estética, não da pontualidade. E, no limite, se o relógio estiver errado, é o mundo que o corrige para nós, com uma notificação silenciosa.

Mas para a minha avó, o tempo é coisa séria. É sagrado. É o que marca a hora da sopa, da novela, do terço. É o que ancora os dias ao chão. Acertar relógios é mais do que garantir que sabe se são 10:05 ou 10:10. É garantir que o mundo não escorrega pelos dedos. Que não se atrasa, que permanece no seu lugar. Há algo comovente nisso. Na verdade, talvez o que a minha avó faz é resistir ao colapso do tempo como o conheceu. Nós vivemos no fluxo, tudo é imediato, simultâneo, corrigível. A minha avó vive na cadência, tudo tem a sua hora, e essa hora tem de ser respeitada.

A minha avó sempre foi muito ansiosa com o tempo e tentava sempre estar à frente dele. Eu acabei por herdar um pouco desta sua tendência, logo nos primeiros anos da minha vivência. Das mil e uma coisas que ela tinha de fazer, preparar o almoço para mim, era das mais importantes para poder chegar a horas à escola. De mão dada, lá me levava apressadamente. Depois voltava a casa, regressava à sua rotina e esperava pelas 18h00 para me ir buscar. Foram vários anos nesta dinâmica. O tempo não abrandou, ganhou asas e passa cada vez mais rápido. Nem mesmo importa a antiga e famosa técnica de adiantar o relógio para sentirmos que ainda estamos dentro do tempo. Talvez, no fundo, adiantar o relógio seja só um reflexo de quem queremos ser: alguém que tem sempre mais 10 minutos na algibeira. Mas o tempo, como a vida, nunca está realmente sob o nosso controlo. E talvez esteja aí a graça. É o paradoxo de tentar controlar o incontrolável. Tal como o tempo, o clima e a opinião alheia, foge-nos do controlo, mas insistimos com pequenos truques que enganam (apenas) a nossa perceção.

Neste gesto, aparentemente “ridículo”, de acertar os relógios da casa, está um mundo inteiro. Um mundo em que cada minuto conta. Em que a ordem das coisas depende do gesto humano. Em que viver é também cuidar dos pequenos rituais que mantêm a casa (e talvez a alma) em equilíbrio. Por isso, da próxima vez que nos rirmos quando a nossa avó insiste em acertar o relógio do forno que ninguém usa, talvez devêssemos pensar nisto: não se trata de utilidade, trata-se de pertença. De tempo vivido com as mãos, não apenas com algoritmos. E talvez, um dia, quando já não houver avós nem relógios para acertar, sintamos falta deste gesto. E do tempo em que ainda sabíamos o valor de cada segundo.

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