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Artigo de Opinião

HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA

2/02/2024 08:00

Li, há algum tempo, sobre o protesto de cidadãos contra o toque do sino da freguesia que, dizem, lhes perturba o descanso. De imediato, ocorreu-me uma memória de infância, quando passava um fim de semana com os meus padrinhos. A sua casa ficava no largo central da vila, mesmo frente à igreja matriz. Lembro-me que uma das coisas que mais apreciava era ouvir o sino a tocar as horas no campanário. Não me interrompiam o sono e, se estivesse acordada, gostava daquela companhia. Punha-me a contar as batidas cadenciadas, que me davam a referência da hora e me tranquilizavam na regularidade do seu embalo.

Fiquei a pensar o quanto a sociedade muda e como valorizamos ou desvalorizamos o que nos rodeia. Passámos de tempos em que os sinos eram fulcrais para outro em que são dispensáveis e até indesejáveis.

Os sinos foram uma das primeiras formas de comunicação à distância. Os primeiros de que há vestígio datam de pelo menos dois mil anos antes da era cristã. Serviam para alertar as populações sobre a aproximação de inimigos, ou algum perigo, como, por exemplo, um incêndio. Eram também uma forma de congregar a comunidade para solicitar a sua ajuda, comunicar algum decreto, uma nova taxa, etc. Num tempo em que a medida das horas era variável de região para região e as formas de o medir precárias, mormente marcadas pelo movimento do sol, ou pelas alterações que acompanhavam a passagem das estações, os sinos serviam também esse propósito.

Com a implantação do cristianismo, os aglomerados sociais desenvolveram-se em torno das igrejas e, por maior ou menor que fosse a sua dimensão, todas tinham um ou vários sinos — uma demonstração da riqueza da sociedade em que se enquadravam.

O ritmo das atividades humanas regia-se pelo sol e pelo soar das horas canónicas, em que o sino chamava os frades à oração, sendo as principais: as matinas, de madrugada, a hora de noa, pelo meio do dia, e as vésperas, antes do anoitecer. Quando o sino ressoava, dentro dos mosteiros, os religiosos cumpriam os seus rituais e, fora deles, o cidadão comum alinhava a sua jornada de trabalho.

O sino era, portanto, uma presença central em qualquer agregado populacional e tinha formas de expressão próprias que todos entendiam. O sino chamava à oração, marcava o tempo, anunciava a festa, acontecimentos felizes, o perigo e a morte. As populações sabiam distinguir quando sinos cantavam, choravam, picavam, repicavam, badalavam, batiam, rebatiam, tangiam, bandeavam, dobravam, etc. A julgar pelas palavras de Miguel Torga, os toques continham mesmo outras subtilezas: “Pela coragem com que puxavam a corda do badalo, pela maneira como repicavam ou dobravam, sabia-se a que terra pertencia o cadáver que baixava à cova. Os de Leirosa, bonacheirões, pacíficos, pobres, tocavam pouco, devagar, sem vontade e sem brio [...] mas os de Fermentões, espadaúdos, carreiros e jogadores de pau [...] davam sinais de outro modo, viril e triunfalmente [...]” in: Novos Contos da Montanha.

Apesar de nunca ter dominado estas subtilezas, gosto de ouvir o toque dos sinos. Continuam a fazer-me sentir integrada no mosaico em que me enquadro. O soar de um sino, o latido de um cão, o cantar de um galo ou a chilreada com que os pássaros acordam a alba são sons tranquilizadores que certificam a normalidade do que me é familiar.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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