Pai, lembras-te de mim?
Eu sou aquela voz pequenina
que te chamava no meio da noite
quando os monstros se escondiam no escuro
e tu chegavas... sempre.
Lembras-te das minhas mãos nas tuas,
tão grandes, tão firmes,
a guiarem-me pelos caminhos
como quem conhece todas as respostas?
Agora és tu quem me procura nos olhos,
como quem folheia um livro antigo
em busca de uma página rasgada pelo tempo.
E eu estou aqui,
neste silêncio cheio de histórias
que só eu recordo por nós dois.
Às vezes, num segundo breve,
vejo-te regressar —um olhar, um sorriso,
um “filha” sussurrado como vento leve.
E nesse instante o mundo inteiro pára,
porque és tu outra vez,
inteiro, meu Pai.
Depois... voltas a partir
para esse lugar sem nome
onde eu fico à tua espera,
com a mesma paciência
com que tu esperavas que eu aprendesse a andar.
Pai... mesmo que os teus dias se apaguem devagar,
eu continuo a escrever-nos no coração,
linha a linha,
para que nenhuma memória se perca —
nem a tua,
nem a minha de ti.
A demência é uma despedida silenciosa, feita aos poucos, em fragmentos. Leva consigo rostos, histórias e gestos familiares, apagando as linhas que antes desenhavam quem a pessoa era. Não rouba apenas memórias, desfaz, lentamente, a identidade de quem amamos. E nós, do lado de cá, ficamos a segurar o que resta, a amar por dois, a lembrar por quem já começa a esquecer.