Dois termos que começam pelas mesmas quatro letras do alfabeto, mas que dificilmente coexistem em harmonia: histeria e história. Um conhecimento sólido da nossa história coletiva é essencial para não nos deixarmos manipular por agendas políticas alheias. O progresso da Humanidade assentou sempre na razão e na lógica. Infelizmente, assistimos hoje a um perigoso retrocesso na valorização do conhecimento, dos factos e da ciência, em benefício dos impulsos do coração e de outras vísceras.
A mais recente tentativa de polarizar os portugueses — criando, desta vez, dois campos artificialmente antagónicos, o “25 de Abril” e o “25 de Novembro” — constitui uma manobra perigosa de reescrever a história portuguesa para tirar dividendos eleitorais imediatos. Sei que hoje já é 29 de novembro, mas não posso deixar de expressar publicamente a minha profunda consternação perante o que ecoou do púlpito da Assembleia da República por parte da extrema-direita durante a sessão solene esta semana. Não foi apenas uma artificial “guerra das flores” entre rosas brancas e cravos. Foi a recusa do 25 de Abril enquanto momento fundador da democracia portuguesa e, com isso, a tentativa de branquear as atrocidades do regime fascista do Estado Novo. É querer usar rosas brancas conspurcadas com a brejeirice do Chega, nivelando o parlamentarismo português pela bitola de uma tasca medieval.
A nossa democracia é um processo evolutivo e, para além da inegável importância do 25 de Novembro enquanto vitória da moderação democrática, outras datas também foram pivotais: as primeiras eleições livres com sufrágio universal (25 de abril de 1975), a aprovação da Constituição pela Assembleia Constituinte (2 de abril de 1976) e até a entrada de Portugal na então CEE (12 de junho de 1986), que consolidou a europeização das nossas instituições e do nosso desenvolvimento socioeconómico. Mas sem o 25 de Abril nenhum destes acontecimentos teria sido possível: foi esse o verdadeiro big bang da democracia portuguesa.
Infelizmente, os limites entre partidos nem sempre têm sido estanques, e há aproximações que ultrapassam linhas vermelhas que deveriam salvaguardar as forças verdadeiramente democráticas do país. Não deixou de ser caricato ver um deputado regional do PSD publicar, a 25 de novembro, um texto a proclamar “comunismo nunca mais!!”, gerando dezenas de comentários — inclusive do Brasil — de pessoas que interpretaram a frase à luz da política sul-americana. Algumas respostas públicas ilustram bem o desvario: “Essa frase pressupõe que já houve comunismo antes. Que não houve. Agora fascismo houve, e durante décadas. Fascismo nunca mais!”; “O senhor é deputado numa região em que o poder não muda há 50 anos, independentemente de todos os escândalos e crimes que existam, e vem falar em ‘comunismo nunca mais’?”; “Quando é que o comunismo governou o Brasil?”; ou ainda “Obrigado por agradeceres ao Mário Soares de forma tão efusiva. Se ele hoje fosse vivo e te lesse, diria ‘burrice nunca mais’. Tristeza. Onde foi parar o PPD”.
Curioso é notar que, durante a maioria absoluta de Cavaco Silva, não se cedeu à tentação de provocar divisionismos na sociedade portuguesa em torno da revolução de Abril e do 25 de Novembro. Foi precisamente um governo minoritário da AD que abriu caminho a uma falsa equiparação entre os dois “25”: duas comissões, duas sessões solenes na Assembleia da República e duas flores. Uma oportunidade rapidamente aproveitada pela extrema-direita para tentar usurpar por completo a conquista de Abril, como ficou evidente nos discursos e nas declarações públicas recentes. Menos histeria, mais história, por favor.