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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

24/12/2021 08:00

A Luisinha do Cambado era hábil a espalhar más notícias, falsas e verdadeiras, mas daquela vez não conseguia introduzir-se em casa da vizinha para lhe contar que o filho tinha perdido o juízo e andava a dormir na rua e a comer nos caixotes do lixo. A família não a deixava sequer pisar o quintal, porque a mãe do rapaz estava doente e acamada, mas ela tanto andou até que se fez nada e foi sussurrar-lhe a desgraça ao ouvido.

- Foi tudo culpa daquela mulher! - Disse-lhe.

E repetiu-o várias vezes.

Já agora, o que vão ler, se tiverem pachorra para isso, é o excerto de uma história da minha autoria - obviamente - que integra uma coletânea de textos de vários autores, publicada em livro este ano, embora eu ainda não o tenha visto, coisa que parece mentira, mas não é. Fiz uma revisão do texto, porque nunca nada é puro, e agora reza assim:

Francisco abandonou o emprego e durante meses ninguém soube dele. Depois viram-no a vaguear na rua, nojento, vazio, sem-abrigo. Enquanto o seu cabelo crescia desgrenhado e a roupa se rasgava e ensebava e o corpo mirrava e fedia e ele se tornava irreconhecível e repugnante, Samuel - o amigo traidor - casou-se com Lídia, o amor da sua vida.

Ela, porém, não sabia nada sobre a vida indigente de Francisco. Uma semana antes do casamento, procurara-o no local de trabalho para o convidar, mas disseram-lhe que tinha desaparecido sem dar explicações. Por outro lado, Samuel nunca lhe revelou os trágicos acontecimentos ocorridos naquela noite. Era assunto morto e enterrado, o local da sepultura desconhecido e a sua consciência estava tranquila, o coração muito sossegado. Certamente, pensava ele, Francisco fez o mesmo e por isso desapareceu.

É melhor assim, pensava Samuel, enquanto a mulher girava pela casa, preparando-se para mais uma viagem de férias. Ninguém cobra nada a ninguém, pensava ele, vendo como as calças de ganga assentavam tão bem na mulher, realçando-lhe as nádegas e a zona púbica e também o desejo dentro de si. Ninguém cobra sequer o olhar, dizia em pensamento, com os olhos postos nas mamas da mulher, que eram pequenas e tesas e agitavam-se nervosas contra a seda da blusa. Não temos de fingir. Somos livres.

E foi então que Lídia disse:

- Vamos!

Era o terceiro ano de casamento e eles preparavam-se para iniciar mais uma viagem juntos. Lá em baixo, na rua, esperava-os um táxi para os levar ao aeroporto. Era ainda muito cedo. Estava escuro.

Lídia abriu a porta do elevador e perguntou ao marido se queria ajuda. Ele disse que não, que levava as malas sozinho, ela que fosse à frente avisar o taxista. Lídia abriu a porta de vidro e ferro forjado do prédio, uma porta lindíssima que tanto amava, e deparou-se com um volume sombrio na soleira. Parecia um saco cheio de porcaria, tal era o fedor.

- Alguém deixou aqui o lixo - disse, virando-se para o marido.

- Isso não é lixo - respondeu Samuel. E sacudiu o volume com o pé.

O vagabundo gemeu, resmungou e afastou-se para um canto. Depois olhou nos olhos de Lídia e também nos olhos de Samuel e estes, por sua vez, olharam nos seus olhos sujos e amarelos.

- Vamos - disse Samuel.

O taxista ajudou-o a pôr as malas no porta-bagagem.

Lídia ficou para trás. Olhava insistentemente para o vagabundo, como se quisesse concluir um pensamento e não fosse capaz. O vagabundo também olhava para ela. Estava encolhido, como se tivesse muito frio ou como se Lídia lhe abrisse o coração e provocasse muito frio.

- Vamos - repetiu Samuel.

No avião, Lídia sentou-se à janela e esteve a olhar para as nuvens e para o céu e para o mar durante muito tempo, enquanto Samuel lia o jornal. Depois, virou-se para o marido e disse, abrupta:

- Era ele, não era?

- Sim, era ele - respondeu Samuel, mecanicamente, como se esperasse a pergunta desde a primeira hora. Estava calmo e não tirou os olhos do jornal.

A Luisinha do Cambado suspirou e repetiu:

- Foi tudo culpa daquela mulher.

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