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Artigo de Opinião

27/02/2022 08:00

Há cerca de três semanas, dois bons amigos e eu mantivemos um debate, no mural de Facebook de um deles, sobre a melhor forma de combater o populismo. Nessa cordata e profícua troca de opiniões, ficou claro que cada um de nós defendia uma diferente estratégia para lidar com o fenómeno. O Sancho Gonçalves Gomes, entretanto, verteu a sua posição num artigo de opinião ("Desradicalizar", JM, 11/02), tendo o Nuno Morna ripostado com o seu argumentário a 21/02 ("Chega de populismo, DN). Apesar dos pontos que têm em comum com a minha posição sobre esta matéria, mais um do que o outro, a estratégia que preconizo é mais assertiva e nada crédula quanto à possibilidade de "normalizar" aquilo a que prefiro apelidar de "besta" ou "monstro".

Para começar, e nisto estamos de acordo, há que trabalhar nas causas: o que tem levado tantos eleitores a votar em propostas populistas é a percepção das crescentes desigualdades, as dificuldades económicas, o declínio dos laços aos partidos políticos tradicionais, a ascensão das políticas identitárias e a desconfiança nas instituições.

Ou seja, na origem do problema estão as doenças da democracia liberal, sendo que o populismo é o vírus que tenta contornar o sistema imunitário para a destruir.

Tratar as doenças que estão a corroer a democracia, porém, é um trabalho de longo prazo. Não vou gastar caracteres a enumerar o que deve ser feito, recomendo antes a leitura do artigo do Nuno Morna, que o explicitou muito bem.

O populismo alimenta-se de narrativas de cisão e confronto: o "povo puro" ou as "pessoas de bem" (ou a raça branca/caucasiana) contra "a elite corrupta", "a comunicação social vendida", e toda a plêiade de supostos inimigos da "impoluta identidade nacional" que se reúne em torno da trilogia "Deus, Pátria e Família", a que se junta o "Trabalho" para disfarçar. Neste lote de alvos a abater cabem ciganos, negros, homossexuais, imigrantes (que não sejam louros), pessoas que professem outras religiões, presidiários, beneficiários de apoios sociais... em suma, todos aqueles que, em determinado momento e contexto, sejam susceptíveis de ser considerados uma ameaça ou um problema. Para esta "escória da sociedade", preconiza-se a exclusão e o opróbrio.

Sendo inegável que este discurso de ódio apela a todos os racistas, homofóbicos e saudosistas do bolor salazarento de antanho (que os há, e não são assim tão poucos), é líquido que a esmagadora maioria dos que se sentem atraídos pelo "monstro" está ali por engano ou por protesto. Não sabem no que se estão a meter, não desejam minar as instituições democráticas, nem almejam instalar uma ditadura militarista e repressora. Contudo, eis um dos grandes paradoxos deste combate, não há como convencê-los que estão errados, sem parecer condescendente ou paternalista.

As várias camadas de combate ao populismo têm de ser direccionadas consoante os alvos, mas a batalha é difícil porque o inimigo é astuto e hipócrita.

Ao contrário da extrema-esquerda, que sabemos bem onde se posiciona e aquilo que defende (por péssimo que seja), a extrema-direita é dissimulada e camaleónica. Muda de programa, altera propostas, transforma os ataques em "brincadeiras" ou "trocadilhos", mente descaradamente, insulta, grita, arrasta para a lama e aí se refastela. A cada tentativa sucedida de desconstrução do seu discurso, mesmo perante argumentos fundamentados e até mesmo arrasadores, os interlocutores populistas apresentam-se sempre aos seus seguidores como vencedores incontestáveis, ou, quando lhes convém, como vítimas de conluios do "sistema".

Esta estratégia é implementada com a cumplicidade e complacência da generalidade da comunicação social, que não resiste ao apelo dos "soundbites" simplistas, nem cumpre com o dever de informação, não impõe filtros nem executa verificação de factos de forma massiva.

As redes sociais desempenham, igualmente, um papel fulcral, apesar de estranhamente negligenciado pela generalidade dos actores políticos tradicionais. As "fake news", a utilização em massa de "bots", "trolls" e perfis falsos, com a cumplicidade orientada dos algoritmos, criam uma bolha narrativa que envolve os militantes e simpatizantes da "coisa", ao ponto de os fazer acreditar piamente que só uma razão e uma realidade existem - a deles.

Posto isto, como será possível "desradicalizar", trazendo-os para o centro, meu caro Sancho? Trazer um Cavalo de Tróia para o interior da Democracia, com o ventre apinhado de ódio ao "sistema"? No limite, só com acordos escritos a estabelecer "linhas vermelhas" inultrapassáveis, salvaguardando todos os princípios e preceitos democráticos. Os riscos seriam sempre muito superiores aos eventuais benefícios, mesmo que essa vantagem se revestisse de uma garantia de vitória eleitoral para quem se encostasse ao "monstro ". Correria o sério risco de sucumbir ao abraço do urso.

Então, a via do diálogo, o poder da argumentação, a força das ideias, será que é só por aí que se vence esta batalha, meu caro Nuno?

No quadro que tracei acima, e que a realidade não tem desmentido, é escasso e insuficiente. De que serve ganhar um debate contra um populista, se ele se apresenta como vencedor (ou vítima), os seus apoiantes acreditam nele e a comunicação social disso faz eco?

Nem falinhas mansas nem paninhos quentes, digo eu.

Dentro daquilo que a nossa Constituição permite, usando todos os mecanismos permitidos pelo edifício democrático que construímos, tudo deve ser feito para acantonar e estrangular a "besta". Um bom exemplo é o que sucedeu com a AfD na Alemanha, que foi democraticamente encostada às cordas e agora se apresenta volátil, dividida e em quebra eleitoral.

Retirar palco, impedir protagonismo, fiscalizar, impedir a infiltração das forças de segurança, apropriar-se dos temas e dar sinais claros de que são prioridades a resolver.

O elefante na sala não é o "Chega", mas sim os temas de que se apropriou. A corrupção é um grave problema? Os partidos democráticos devem assumir claramente que sim e dar sinais inequívocos de que a vão combater. E assim sucessivamente, desmontando cada uma das bandeiras desfraldadas pelo populismo.

Aperfeiçoar a democracia é o caminho, açaimar a "cadela fascista" é uma necessidade. Pode não ser bonito, mas tem de ser feito. Por todos.

"Quem não se mobiliza quando a liberdade está sob ameaça jamais se mobilizará por coisa alguma." - Hannah Arendt

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