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Artigo de Opinião

Professora Universitária

23/06/2025 07:30

Num encontro de académicos em que participei, ouvi dizer, com grande autoridade por parte do interveniente no debate, que Portugal deveria reconhecer a sua ancestralidade de 900 anos e deixar-se dos discursos da globalização que nada têm a ver com a sua essência. O contexto era o de justificação para a ideia de que hoje os jovens se espalham pelo mundo e geralmente não ficam perto dos pais. Saltemos as várias justificações para esse fenómeno, que vão desde possibilidades de carreira, de melhor salário, de acesso mais fácil à habitação, para nos focarmos no que significa a ancestralidade portuguesa de 900 anos, como se se tratasse de uma distinção étnica, centrada na nação, contrária à globalização, ao movimento e ao contacto entre culturas.

Num momento em que aumentam em Portugal, e na Madeira também, os fenómenos de ataques a migrantes, muitas vezes calados pelo medo das vítimas, o discurso do “nós” contra “eles”, alimentado pela neo-direita extremista e organizada mundialmente de fora para dentro, tem vindo a aproveitar-se, à semelhança do Estado Novo, da ideia de que ser português é um destilado rácico e étnico puro. Nada de mais errado. Como toda a Europa, os portugueses foram tecidos nos contactos, por vezes nada pacíficos, com várias culturas e etnias. Antes de Portugal ser reino, já por cá tinham passado os povos pré-românicos (iberos, celtas, etc., etc.), os fenícios e cartagineses, os romanos, os povos germânicos e por cá andavam os muçulmanos. O pai de Afonso Henriques era um estrangeiro, por exemplo, que, aliás, chegou a ter decisões contestadas por isso mesmo. Uma espécie de “quem-é-este-que-não-nasceu-aqui-e-vem-dar-opinião”, digamos.

Ancestralidade sem globalização? Mas, se fomos nós que a levámos, e muitas vezes a impusemos à força de espada e espingarda, ao mundo? Sem emigração? Mas, se fomos nós que povoámos os “bidonville” de França com os clandestinos que passavam “a salto” a fronteira, que emigrámos para a África do Sul, o Brasil, a Venezuela...? Para quem tem discursos de “estamos bem sós”, de que o emigrante português representou uma mais-valia para a economia desses países, uma bênção, esquece-se que, logo a partir do final do século XIX, o antilusitanismo nasceu no Brasil impulsionado pela ideia de que os portugueses roubavam o trabalho aos brasileiros.

O passado que nos une aos outros povos deve forçosamente fazer refletir sobre a cultura humanística e a importância que esta deu ao ethos, ao comportamento ético do homem e da sociedade e à reflexão que levou ao desenvolvimento do conhecimento. O Portugal das origens, o Portugal de hoje e o desejo de um Portugal do futuro, colocam justamente a questão de se pensar por linhas de um percurso simultaneamente comum e múltiplo, na sua totalidade, para a sua reinterpretação moderna. O esquecimento e as atitudes de desagregação do passado levam a uma atitude distorcida da perceção e compreensão do presente.

Nunca, como hoje, numa época em que perigosamente nos aproximamos de uma involução e de uma decomposição devido a forças paralisadoras e desagregantes, foi tão importante o conhecimento e a consciência da nossa história global. E, por isso, devemos, para bem de todos, usar todos os meios para parar com a violência e a raiva com que estão a alimentar as pessoas, com especial atenção aos jovens. O ódio nunca vem só: não é só rácico, étnico, é de género, de idade, de aparência física, de consumo, político, ideológico, social... Falhar contra um é falhar contra todos. Porque, como escrevem Bauman e Donskis, quando a dor moral perde a salutar função de advertência, de alarme e de impulso para ajudar o nosso próximo, inicia-se a era da cegueira moral.

A negligência estende-se e intensifica-se e a trama das relações humanas, frágil e delicada, é substituída pela ligação entre criadores de conteúdos e consumidores amorfos, a quem é instilada uma insensibilidade ética artificialmente induzida. Mais do que nunca é necessário desviar o olhar das sombras, com a ideia de que não agredimos adversários, inimigos, mas os nossos próximos, e que de superior como espécie só temos mesmo a nossa bússola moral.

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