Ontem voltou a mudar-se a hora. Já lhes perdi a conta, confesso. Vale-nos que, hoje em dia, a maior parte dos relógios faz o serviço sozinha. Mas, afinal, por que raio continuamos a andar a mexer no tempo duas vezes por ano?
A pergunta parece inocente, mas tem tanto de lógica como de absurdo histórico. A mudança de hora é uma daquelas invenções humanas que nasceram com boas intenções e ficaram por inércia, numa espécie de costela burocrática do tempo. Ninguém sabe bem quantas vezes já mudámos a hora, ninguém sente grande benefício com isso, mas todos seguimos religiosamente o ritual de primavera e outono, como se o relógio fosse uma planta que precisa de poda sazonal.
A origem é mais prosaica do que científica. O objetivo inicial era aproveitar melhor a luz solar e poupar energia. A ideia foi lançada ainda no século XVIII por Benjamin Franklin, que sugeriu que as pessoas acordassem mais cedo no verão para pouparem velas. Mas foi durante a Primeira Guerra Mundial que a medida se tornou prática: Alemanha, Inglaterra e outros países decidiram adiantar os relógios para economizar carvão. Portugal, claro, não quis ficar atrás e aderiu ao movimento. A lógica era simples: se os dias são mais longos, adiante-se a hora para gastar menos eletricidade.
O problema é que essa lógica pertence a um mundo que já não existe. Hoje, com iluminação LED, ar condicionado inteligente e eletrodomésticos que falam connosco, a poupança energética é praticamente irrelevante. Estudos europeus mostram que o impacto no consumo não chega a 0,2%. Ou seja, passamos a vida a mexer nos ponteiros para poupar o equivalente a uma lâmpada acesa no corredor. É como mudar o curso de um rio para regar um vaso de flores.
E se a economia de energia é quase nula, o impacto no corpo é tudo menos insignificante. O relógio biológico humano não é uma aplicação que se atualiza automaticamente. Dormimos pior, ficamos mais cansados, há mais acidentes rodoviários e laborais nos dias seguintes. Estudos até apontam para um ligeiro aumento de problemas cardíacos. Tudo isto porque alguém, há mais de cem anos, achou que uma hora a mais de luz natural resolveria as contas de um império em guerra.
A verdade é que a sociedade moderna já não vive em função da luz solar. Trabalhamos em escritórios fechados, iluminados artificialmente, respondemos a e-mails à meia-noite e fazemos jogging às dez da noite com auriculares fluorescentes. O dia e a noite tornaram-se conceitos estéticos, não realidades funcionais. A mudança de hora é, neste contexto, um ritual anacrónico, quase folclórico. Um costume herdado de um mundo rural e industrial que teimamos em preservar no tempo do 5G.
Em Portugal, a confusão é ainda maior. Geograficamente, devíamos estar alinhados com Londres, na hora de Greenwich (GMT). Mas quando chega o horário de verão, sincronizamo-nos com Madrid (GMT+1), o que faz com que o sol nasça tarde — às vezes depois das sete e meia — e se ponha quase às dez. É ótimo para os turistas e para as esplanadas, péssimo para quem tem de estar a trabalhar às oito da manhã. Vivemos literalmente desfasados da luz natural, e a cada mudança de hora lá vem o debate: manter a de verão, a de inverno, ou abolir o vaivém?
Em 2019, o Parlamento Europeu decidiu que era altura de acabar com esta brincadeira. Propôs-se que cada país escolhesse um horário fixo. Mas, como sempre acontece quando a Europa tenta decidir algo simples, nunca houve consenso. Uns querem a hora de verão para aproveitar o pôr do sol tardio, outros a de inverno para acordar com luz. E, no fim, ficámos todos à mesma, trocando a hora duas vezes por ano, enquanto as comissões técnicas estudam “os impactos no sono e na economia”.
A questão, no fundo, é política e cultural. Há países do norte que valorizam cada minuto de luz solar como se fosse ouro; há outros, como o nosso, que já têm sol de sobra e podiam muito bem dispensar o teatro. Portugal tem uma relação emocional com o pôr do sol, mas isso não devia obrigar-nos a mexer nos relógios como se o tempo fosse uma marioneta ao nosso serviço.
O mais sensato seria escolhermos um horário e ficarmos por aí. Se me perguntarem, optava pela hora de inverno, a natural, a do sol. A hora de verão é simpática para o turismo e para as esplanadas, mas artificial na essência. É uma hora emprestada, uma ilusão luminosa que pagamos com o sono, o corpo e a paciência.
No fundo, continuamos a brincar com o tempo como quem tenta enganar o destino: adianta-se o relógio e convence-se o cérebro de que o dia dura mais. Mas o sol, indiferente, nasce e põe-se à mesma hora de sempre, e deve rir-se de nós, lá do alto, enquanto andamos todos, duas vezes por ano, a acertar relógios e a fingir que dominamos o tempo.