O julgamento do processo BES/GES começa na terça-feira, com o ex-banqueiro Ricardo Salgado a ver o Ministério Público rotulá-lo como líder de uma associação criminosa e a defesa a descrevê-lo como o doente que não deve ir a tribunal.
A primeira sessão está marcada para as 09:30, no Juízo Central Criminal de Lisboa, e o antigo presidente do Grupo Espírito Santo (GES) é o rosto incontornável do processo principal do denominado Universo Espírito Santo, respondendo por 62 crimes, após três dos 65 crimes inicialmente imputados na acusação proferida pelo Ministério Público (MP) terem prescrito recentemente (e com mais 10 na rota da prescrição até final de março de 2025).
Estão ainda imputados a Ricardo Salgado um crime de associação criminosa, 12 de corrupção ativa no setor privado, 29 de burla qualificada, cinco de infidelidade, um de manipulação de mercado, sete de branqueamento de capitais e sete de falsificação de documento, praticados pelo menos entre 2009 e 2014 e pelos quais vai ter de responder perante o coletivo de juízes presidido pela magistrada Helena Susano.
Foi a 14 de julho de 2020, na sequência de seis anos de investigação, que a Procuradoria-Geral da República confirmou a queda em desgraça do homem que chegou a ser apontado como o “Dono Disto Tudo”. Não chegou o MP a recorrer a esta expressão ao longo das mais de 4.000 páginas da acusação, mas a ideia perpassa todo o texto, ao invocar que governou o GES “de forma autocrática” e que foi o principal responsável pelo colapso do grupo e do banco.
“[Foi] o responsável por uma estrutura de governo da parte financeira do GES assente em conflito de interesses, em que o seu prevaleceu, e com organismos de controlo inoperantes, quer externos quer internos, a quem sonegou informação elementar sobre o modo como organizou o negócio bancário, e nele recrutou, a soldo, um conjunto de funcionários que foram posicionados para os seus desígnios criminosos”, indicou o MP no despacho de acusação.
Para os procuradores que o investigaram, liderados por José Ranito, atual Procurador europeu português, Ricardo Salgado “logrou apropriar-se de património de terceiros no âmbito do negócio financeiro do Grupo, onde fez circular dívida das entidades não financeiras, independentemente da legitimidade para o exercício dessa atividade, ou das condições patrimoniais destas empresas”.
Na ótica do MP, o ex-banqueiro mascarou a realidade do grupo com a “produção sistemática e sucessiva de demonstrações financeiras falsas”, que foram divulgadas a “acionistas, credores, auditores de empresas do GES, supervisores, nacionais e estrangeiros”, como terá sido o caso da falsificação das contas da sociedade Espírito Santo International (ESI).
E tal só terá sido possível, segundo a acusação, com a “existência de células organizadas, com domínio de assuntos de auditoria, de supervisão, do circuito bancário e do circuito de intermediação financeira para a prática deliberada de atos criminosos, e de todos os conexos a impedir a sua deteção e permitir a sua dissimulação na normalidade de uma atividade particularmente complexa”.
Desde então já se passaram quatro anos e uma longa fase de instrução que validou na íntegra as acusações ao ex-presidente do GES. Foi durante este período que o estado de saúde de Ricardo Salgado se deteriorou também, com a defesa a apresentar sucessivos relatórios de diagnóstico de doença de Alzheimer, bem como pedidos de perícias neurológicas.
Argumentando que o ex-banqueiro, de 80 anos, “não está em condições de, pessoalmente, exercer a sua defesa”, Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce manifestaram na sua contestação à acusação a crença de que “o populismo não se sobreporá à aplicação da lei e da Constituição da República Portuguesa” e avisaram que “Portugal pode ser condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos” se continuar com o julgamento de Salgado.
“Deve ser determinada a extinção do presente processo-crime quanto ao arguido, em razão da sua situação clínica, que o impede de exercer, pessoalmente, o seu direito de defesa. Caso assim não se entenda, deve ser determinada a suspensão do presente processo quanto ao arguido, enquanto perdurar a sua atual situação clínica. Em qualquer caso, o arguido deve ser absolvido quanto a todos os crimes”, resumiu a defesa.
Porém, os advogados foram mais longe e, independentemente da questão de saúde, defenderam que Salgado “fez tudo o que estava ao seu alcance para que o desfecho não fosse o que ocorreu no verão de 2014”, ao considerarem que a responsabilidade pelo colapso passou pelo Banco de Portugal e que a tese do “Dono Disto Tudo” foi “uma narrativa oportunista aproveitada por muitos”.
Além de refutar todos os crimes, a defesa de Salgado centra-se na imputação de associação criminosa para a descrever como uma “autêntica fantasia” do MP, ao notar que nem o GES e nem o BES tinham por finalidade a prática de crimes. “Se tivesse havido uma qualquer resolução de associação criminosa desde 2009 até 2014, o arguido certamente não teria arriscado e investido o seu património pessoal no GES e no BES”, observaram.
A defesa alegou, por isso, que a história do BES/GES “não pode ser reduzida a uma ‘associação criminosa’” às ordens de Salgado e que a acusação por esse crime é feita “de uma forma escandalosamente infundada” pelo MP. Assinalaram também diversas nulidades e indicaram que as imputações ao ex-banqueiro são genéricas, denunciando uma “mão cheia de nada”.
Considerado um dos maiores processos da história da justiça portuguesa, este caso agrega no processo principal 242 inquéritos, que foram sendo apensados, e queixas de mais de 300 pessoas, singulares e coletivas, residentes em Portugal e no estrangeiro. Segundo o MP, a derrocada do GES terá causado prejuízos superiores a 11,8 mil milhões de euros.